3.4.09

sozinha, no escuro

sozinha, no escuro ela alucinava. notava sons disformes provindos de alguma região estranha. nenhuma fonte de luz visível, ninguém para tirá-la de lá, nada além do ar gélido da madrugada, sem nenhum cobertor ou qualquer fonte de calor, ela tremia despida sozinha no escuro.

ninguém havia chegado tão longe na escuridão de sua alma. ninguém havia sequer chegado perto dela. já se acostumara a estar na escuridão total, os outros sentidos se desenvolveram mais que o normal, ela notava coisas que ninguém jamais conseguira, ela tinha muito mais do que qualquer um pudesse sonhar em conseguir, e conquistou tudo, sozinha, no escuro.

era humana, apesar de tudo. tinha consciência, inteligência, malícia e um toque um tanto singelo de podridão, definitivamente era humana. o escuro a confortava, a deixava mais forte, a escuridão intransponível era sua barreira contra todas as coisas indesejadas, toda dor e todo sofrimento. o escuro era seu escudo. um escudo que lhe fazia muito bem, além de protegê-la, ele havia conseguido que ela desenvolvesse outras habilidades, outros pontos de vista - mesmo sem conseguir enxergar -, outras sensações, outra forma de vida. ela não tinha problemas, nada conseguia adentrar a escuridão que a rodeava, nem a mais puntiforme fonte de luz jamais brilharia em seus olhos, ela era única.

não acreditava em bem ou mal, certo ou errado, sim ou não, para ela não havia esse maniqueísmo exacerbado. ela tinha seu próprio idioma, seu próprio estado, sua própria igreja, sua própria sociedade. deixava de ter coisas básicas que todo e qualquer ser humano tem, mas para ela não fazia diferença, uma vez que jamais chegou a conhecer outra coisa além do escuro ensurdecedor que a rodeava.

uma vez, todavia, tentou se aventurar pela claridade. não durou nem um segundo, a mais ínfima fonte de luz ofuscara seus olhos, trazendo dor insuportável. a dor tomou conta de seu ser, ela deixou de existir por alguns instantes, foi a dor mais aguda que sentira em sua vida. após esse episódio, ela jamais tentara sair do escuro e se sentiu mal por tentar descobrir se havia algo além do grande nada que a rodeava, sentiu que havia traído algo que sempre lhe fizera tanto bem. ela nunca chegaria a conhecer o tipo de dor que você conhece, da mesma forma que você jamais saberá o tipo de dor que ela sentiu quando tentou olhar de relance uma pequenina fonte de luz.

se você tivesse a chance de vê-la, a acharia mais indefesa do que um animal acuado e aterrorizado de pavor. e você sentiria pena dela. você sentiria dó dela, tentaria ajudá-la, chegaria mais perto, e ela te atacaria como um animal feroz ataca sua presa, ela te atacaria com tanto afinco como uma pessoa que está prestes a morrer se agarra na última chance de sobrevivência. e você tentaria se livrar do ataque dela e correr pela sua vida, se conseguisse, jamais voltaria lá para tentar domá-la.

ela não era um animal, ela era mais sublime que o sentimento mais puro de amor que qualquer ser humano possa ter sentido. ela era sua evolução, ela era a imagem da auto-suficiência, ela não precisava de nada além dela própria.ela era melhor que qualquer ser humano, sozinha, no escuro.

ela sabia mais das coisas da vida, ela saberia viver em sociedade melhor do que ninguém, conseguiria dominar massas, fazer revoluções, exterminar raças, salvar o planeta... mas ela decidiu ficar em outro lugar. o resto dos ambientes eram impuros demais para recebê-la, ela poderia salvar o mundo, incluindo você, mas ela não podia, ela estava presa, sozinha, no escuro.

4 comentários:

Mandarim disse...

Perfeito seus textos. Você escreve muito bem.

Mandarim disse...

Cada um tem um tipo diferente de talento - nem que seja aquele famos talento de "fazer meleca". Você escreve muito bem, e deve mandar muito na bateria. Eu tenho facilidade em mexer com informática, e quase nenhum na bateria. E assim caminha a humanidade.

Continue escrevendo, vai ser um sucesso!

Beijos!

Anônimo disse...

saber encher linguiça é uma arte!!

Mandarim disse...

Se você tocasse mesmo muito mal, jamais teria feito show. Pare de se menosprezar - existe uma deusa das baquetas e uma escritora de sucesso dentro de você. Basta você deixá-las sair e aparecer.