26.2.10

a beata

sentia-se anestesiada, todo seu corpo formigava deixando-a incomodada com a situação. quanto tempo fazia? um mês, cinco meses? não sabia ao certo, só sabia que era mais tempo do que era possível suportar. precisava daquilo de novo, aquela sensação de êxtase inebriando seu corpo, tomando tudo como seu, fazendo-a sentir cada músculo se contraindo e depois relaxando num gozo febril. com a esperança de sanar a iminência da situação decidiu tomar um banho e tentar dormir.

rolou na cama por alguns longos minutos e finalmente adormeceu. em seus sonhos só via seu objeto de desejo insinuando-se para ela. bruxuleando com a leve brisa que entrava pela fresta da janela zunindo. todos os tons de vermelho explodindo e pintando o quarto em gotas espalhadas vindos da erupção do desejo. e ela se banhava daquele púrpura vivo a engolfando e sorrindo.

acordou de um lampejo, contudo com a respiração amena e sutil; sem demonstrar qualquer sinal que degladiava consigo mesma entre necessidade, vontade e culpa. ao arrumar-se, para ir encenar seu papel para a sociedade produtiva, decidiu que não tardaria a ter seu desejo realizado. com a culpa lidaria depois, o mais importante era sanar sua necessidade ávida por prazer.

vestiu-se com suas roupas normais: a saia escura abaixo dos joelhos, a camisa pringles, o sapato sem salto sóbrio, as meias soquete de lycra brancas e o coque bem moldado em seus cabelos. se transformava na típica beata interiorana que saia para pregar a palavra aos domingos pelas manhãs. só que ia para a biblioteca municipal justificar seu sustento para pagar o quarto da pensão para moças que vivia.

tomou o ônibus com o motorista de sempre, o cumprimentou e sentou-se no mesmo lugar de todos os dias. fitou por alguns instantes a janela que mostrava a paisagem tão conhecida e abriu seu exemplar de a insustentável leveza do ser de milan kundera. sempre disfarçava quem era na verdade com as roupas e os livros piegas em público. os livros não eram tão disfarce, visto que ela gostava de leitura leve para distraí-la de sua necessidade interminável. estava há tanto tempo abstêmia que teve que se forçar a ler para não escolher um qualquer e fazer o que havia de ser feito ali mesmo, dentro do ônibus. após vinte minutos de martírio chegou à sua parada.

no centro da cidade, muitos transeuntes andando apressados e se esbarrando. ela precisava somente de um esbarrão para perder totalmente o controle. então, se encolheu e abraçou sua bolsa com a intenção de evitar qualquer maior área de contato, afim de evitar o virtualmente inevitável. para sua surpresa, conseguiu chegar à biblioteca municipal sem um único esbarrão e respirou aliviada quando adentrou por entre as portas giratórias.

a biblioteca era a maior do país, circular, o teto em abóbada, o piso em mármore branco; o balcão prostrado exatamente ao meio do edifício abrigava as sete bibliotecárias que trabalhavam ali - das sete ela era a mais jovem, no apogeu de vinte e poucos. chegou e apossou-se de seu lugar de direito e fez de tudo para se compenetrar no seu trabalho. naquele dia, ironicamente, seria terminar de catalogar livros recém-chegados de alguma biblioteca portuguesa que diziam respeito, proeminentemente, de sexo na idade média.

após, aproximadamente, duas horas e meia que havia conseguido se concentrar o suficiente em seu trabalho, a ponto de esquecer que havia vida ou qualquer outra forma de expressão humana, ela foi drasticamente retirada de seu estado ébrio por um rapaz de cabelos castanho-claro cacheados caindo por sobre o rosto. ele perguntava qualquer coisa sobre a sessão de filologia e algum livro sobre o léxico báltico. ela ficou tão atônita que não conseguiu tomar qualquer ação além de balbuciar algumas sílabas dispersas e apontar o corredor correto. ele sorriu e se dirigiu ao local indicado.

ela ficou inebriada com a aparição repentina de uma presa perfeitamente saudável e compatível com o que ela necessitava. não conseguiu mais se concentrar em coisa alguma. precisava ter sua recompensa o mais rapidamente possível. tão logo foi capaz pensou em uma forma de atrair seu objeto de desejo para si. era necessário que fosse algo simples, que pudesse ser feito na biblioteca sem atrair suspeitas, mas confiável o suficiente para que ele mordesse a isca.

displicentemente levou até ele um papel - que comumente contém títulos de livros e sua localização para titulares da biblioteca - com os dizeres: "encontre-me no corredor sete quando só eu estiver na biblioteca. existe um livro que ainda não pôde ser colocado nas estantes que pode ser de grande ajuda à sua pesquisa." e deixou o papel ao lado do livro que estava aberto e retornou ao balcão. ele a olhou intrigado e continuou sua pesquisa.

como ele não tinha dado sinal aparente se teria sido fisgado ou não, ela não pôde fazer coisa alguma a não ser tentar continuar a trabalhar. se parasse, demonstraria ansiedade e isso poderia fazer com que seu joguete ruísse. três eternas horas para que a biblioteca fechasse e para que ela pudesse estar sozinha com seu alvo. tentou ocupar-se de todas as maneiras possíveis, mas não conseguia produzir coisa alguma. todos seus sentidos estavam em alerta, visão mais aguçada, olfato sentindo fragrâncias mínimas, tato exacerbadamente delicado, pela mais leve brisa todos seus pêlos se eriçavam fazendo qualquer toque em sua pele uma pequena descarga elétrica sentida por todo seu corpo. ela estava absurdamente pronta e ávida pelo momento em que sua recompensa seria servida.

resolveu checar se havia colocado o que precisava em sua bolsa. logo que colocou a mão dentro pôde sentir a forma tão conhecida e familiar e fechou os olhos antevendo o prazer que era certo que sentiria. tomada por essa sensação viu uma a uma de suas colegas desaparecerem terminando seus turnos diários. ela se ofereceu para fazer a última checagem e fechar tudo quando o último segurança estava em vias de terminar seu turno. este aceitou de bom grado, já que tinha algum compromisso logo depois do horário de trabalho e não queria se atrasar. quando olhou em volta e viu-se sozinha seu corpo já começou a precipitar a sensação que estaria por vir. só faltava ter certeza que sua presa havia mordido a isca.

soltou os cabelos do coque e pegou qualquer exemplar que estava no balcão que fosse do tamanho para que disfarçasse seu tão familiar utensílio. abraçou o livro e foi capaz de sentir a forma do apetrecho contra seu corpo. seu coração batia mais apressadamente, seus braços tremiam e já podia sentir o cheiro do que estava por vir no ar. respirou fundo e andou calmamente até o lugar do encontro. e lá ele estava a aguardando pacientemente distraído olhando títulos de livros.

aproximou-se dele e quando ele notou sua presença e virou-se para olhá-la, ela já estava perto demais para ser impedida. segurando seu instrumento por baixo do livro, deixou com que o exemplar caísse sobre o chão, mostrando o prata brilhante que emanava limpidamente por entre os livros. com o manejo de um profissional e a graciosidade que só ela era capaz de reunir desferiu o golpe que fez com que jorrasse a fonte de vida inesgotável.

a lâmina cortou uma linha horizontal abaixo do pomo de adão. ele caiu ao chão em um estampido surdo com os olhos castanhos arregalados perdendo lentamente o brilho eloquente que conferia a essência de um ser vivo. astutametente e como um animal ávido por alimento, ela abriu seu tronco a tempo de ver a última batida inerte que seu coração fora capaz de dar. com as mãos nuas, arrancou o órgão símbolo da vida e o encostou seu rosto, deslizando-o, tingindo-se da mais rubra das cores. tomou seu néctar saboroso com avidez gemendo de prazer. passou o órgão extirpado por seu corpo, sentindo necessidade de mais. pegou sua adaga e abriu um corte vertical do pescoço até o começo do abdome. fazendo força com os braços, separou as duas partes e mergulhou a cabeça na reentrância ficando completamente banhada pelo liquido vermelho. neste momento atingiu o êxtase, urrando com um prazer que só ela saberia sentir.

para ele foi tudo um flash, para ela a mais bela cena de um ballet russo em câmera lenta. assim que o ato foi consumado e o fim encontrado, a culpa arrebatadora a tirou de seu estado orgástico. olhou para sua camisa que há poucas horas fora branca, percebeu a poça vermelha que tomava conta do corredor e se desesperou. resolveu lidar com sua consciência naquele instante. no último rompante de prazer carnal que ela própria se proporcionava, ia pressionando a adaga contra seu próprio pescoço de acordo com a intensidade sentida no restante de seu corpo. no fim houve um grito seco, emitido pela traquéia preenchendo o ambiente com um som assombroso misto de prazer e sofrimento jamais alcançados por qualquer ser humano vivente em sua época.

19.2.10

f5

gente, não consigo escrever mais nada.


mentira, consigo sim, mas não passa pelo meu controle de qualidade.

13.2.10

monólogos sobre a amizade

ela diz:
sabe, nós dois somos dois fodidos. é, você todo aí tentando reconciliar caso do passado e eu aqui assistindo comédia romântica. não sei como a gente terminou assim, mas somos perfeitos um para o outro. pena que somos incompatíveis e nós dois sabemos disso. somos os dois talentosos, claro que da nossa própria maneira. e, sendo um pouco mais atrevida, somos até bons partidos. você com essa barba por fazer te dando charme e esse aspecto obtuso e eu, tá, eu nem tenho muitos atributos, mas sou engraçadinha, pra dizer o mínimo.

eu já te disse o quanto eu gosto quando você tem sede de vida? ah, já disse sim, hoje de manhã. mas é legal, você muda totalmente, sai dessa nossa bad instaurada desde a nossa infância e, sabe, mesmo sem querer me dá esperança de sair também. é quase como fim de filme de comédia romântica, sempre acaba tudo bem apesar das intrigas e problemas do meio. menos o filme que eu assisti por último, nem acabou tudo bem. você é o meu fim de filme de comédia romântica quando acaba tudo bem. dá esperançazinha.

é, você me dá esperança, apesar de eu saber que você é tão fodido quanto eu. e as nossas conversas aleatórias? só com você que eu consigo conversar profundamente sobre os propósitos de distúrbios psicológicos e logo depois das propriedades do miojo, ambos casos com a mesma magnitude de pensamentos complexos e teorias complicadas que nunca poderiam ser aplicadas à realidade. você acha que isso é pra qualquer um? não, é só pra gente talentosa - diz-se talentosa pra não dizer que são pessoas problemáticas, ou com "probleminha" como eu sei que você gosta de dizer.

sabe uma das coisas que eu mais gosto em você mas que não teria nenhum problema em te ver sem? a sua amargura, você é mais amargo que o ciúme com um montão de café expresso jogado em cima. e eu gosto disso, porque eu sou tão amarga quanto você. mas eu nem ligaria de te ver feliz e ficar amarga sozinha no canto da festa que todo mundo se diverte menos eu. falando em festa, sabe o que é engraçado? eu nunca te vi bêbado de verdade. só de sono, e você bêbado de sono é realmente bem legal.

gosto muito também do jeito que você inventa vocabulários e jargões e bordões. gosto do jeito que você fala. e acho que te vi rindo de verdade mesmo só uma vez. naquela vez que a gente fez todo mundo parecer ridículo, você ria que dava até gosto de ver, tipo aquelas crianças deslumbradas que nunca viram escada rolante. foi a única vez, todas as outras você tava mais contido. mas mesmo assim eu sempre percebo o quanto você é mais feliz quando tá comigo. continuo no pensamento: pena que a gente é incompatível.

lembra daquela vez que... é, você sabe, eu esqueço das coisas. e você não se importa com isso, gente que me aceita sem memória é sempre gente que merece minha atenção. ah! lembra daquela vez que você esqueceu da gramatura do papel que você precisava comprar e me perguntou só por perguntar e eu disse qual era? naquele dia o mundo parou de girar por dois segundos, eu juro senti o mundo parando e ouvi aquele coro de querubins ao fundo - e choveu pra caralho naquele dia, acho que a culpa foi de eu ter lembrado.

eu gosto como você me empresta livros, até aqueles que você tá na metade mas tá enchendo o saco. aí eu leio, te falo que o livro é legal pra caramba e você volta a ler? e o jeito que a gente discute sobre música? gosto disso, ficamos trocando figurinhas sobre bandas desconhecidas que só a gente e mais meia dúzia no mundo conhece só porque é legal e o nosso gosto é melhor do que o do resto do mundo. tá, eu sei que você não concorda com o nosso gosto sendo melhor, mas eu acho, e o que eu acho é o que tá certo.

também é legal o jeito que a gente se conheceu. quem diria que nós viraríamos amigos? quem diria que nós teríamos tantas coisas em comum? eu não diria, nem você, eu sei. você mudou muito desde que me conheceu e eu nem tanto, só fiquei mais chata, mas isso não foi mérito seu. eu gosto de como você mente absurdamente tentando me enganar, ou quando mente só pra me fazer rir quando eu pergunto "quem vai?". eu nunca me canso da resposta dessa pergunta.

e eu gosto também o jeito que eu posso falar com você sobre qualquer coisa, mostrar meu ponto de vista de verdade de tudo e você não me julga por ele. eu gosto de quando você fala que eu sou bonita, por mais que eu realmente não acredite no que você diz e por mais que eu ache que é só compaixão pra não me ver mal porque a genética não foi legal comigo nessa parte. eu gosto como você gosta das coisas que eu faço e como você acha que eu sou foda em um monte de aspectos. sério, sua opinião conta muito pra mim.

já mencionei o quanto eu acho incrível que você esteja dando um rumo pra sua vida? você tem me ajudado a dar um rumo pra minha também. nossas resoluções nas manhãs de domingo são as melhores. e nem precisamos de ano novo pra achá-las. nós somos absolutamente incríveis. e fodidos. até a sua mãe gosta de mim! isso é inédito na minha vida. todas as mães geralmente me odeiam.

eu sei que com você eu sempre vou ter com quem rir dos infortúnios da vida, sempre vou ter quem me apóie não importa o quão insano um projeto seja, sempre vou ter alguém falando pra mim que vai funcionar, por mais que esteja na nossa cara que não vai. e eu te amo por isso, e por mais um monte de coisas também, mas aí ia ficar mais clichet e piegas do que nós dois conseguimos suportar, então nem vou mencionar.

ele diz:
Você se lembra qual foi a primeira visão que teve de mim? Eu me lembro a primeira que tive de você. Eu ali, parado na estação, encostado na pilastra e você caminhando em minha direção, de preto como sempre, trajando suas charmosas calças de pijama escocês. Você me olhou de cima a baixo, como se tirasse um raio-x do meu corpo e soltou a simples interjeição: "acho luxo", virou-se e começou a conversar com a garota que estava ao lado. Pensei: "que garota petulante!". O tempo passou e eu não imaginei como aquela garota petulante iria me conquistar e fazer de mim uma pessoa menos depressiva e mais expressiva. Gosto das conversas densas que temos, atravessando madrugadas, incontáveis cigarros divididos. Você sempre coca zero, eu sempre coca light. Nos completamos ainda que sejamos completamente incompletos. Crianças vazias e tristes que encontraram apoio em um semelhante qualquer. Lembra do dia que decidimos que este mundo seria pequeno para nós? Guardo a minha melhor lembrança do seu rosto daquele dia. Você estava mais sorridente e bonita do que de costume. Já te falei que a única garota que eu casaria seria você?

8.2.10

26/12/07

vou contar tudo do começo, tipo retrospectiva de fim de ano. eu já tinha escrito que a minha mãe tava doente e tudo mais. dia 23 a elisa veio pra cá. eu a convenci a passar o natal aqui com a gente, e ela convenceu os pais dela. aí ela veio pra cá e ficou até ontem.

aí dia 23 ficamos todos jogando war, a elisa ganhou uma vez e meu pai outra. fizemos pizza, elisa e eu, pra todo mundo. disseram que ficou boa, mas bom mesmo foi jogar farinha na cara da elisa e a ver com um pankake natural. :) aí foi todo mundo dormir e nós duas ficamos assistindo filme. ela dormiu no meu colo, eu fiquei fazendo carinho na cabeça dela. foi bem legal. assistimos brilho eterno de uma mente sem lembranças, ela dormiu no meio do filme. aí, no fim ela acordou, fomos pro meu quarto e dormimos abraçadas.

no dia 24 nós ajudamos a fabíola a preparar a ceia e arrumar a bagunça que a gente tinha feito na cozinha. meu pai saiu à tarde com a minha mãe pra sei lá onde. quando eles voltaram a comida tava quase toda pronta e o peru no forno, a fabíola tinha nos deixado tomando conta do peru, tomamos, nem queimou e ficou mó gostoso. daí, lá pras dez horas a gente comeu, depois abriu os presentes e tal. meu pai e minha mãe foram dormir, a elisa e eu fomos pro meu quarto e ficamos mexendo na internet. daí, tipo, eu não sei muito bem como aconteceu, estávamos rindo de alguma coisa, nossos rostos ficaram mais perto que o normal, rolou aquele silêncio estranho que só tem em filmes e quando eu vi, estávamos nos beijando. foi o melhor beijo da minha vida, pareceu que tudo que eu tava tentando reprimir por ela veio à tona. a gente também transou, não tinha como parar com aquele beijo. foi minha primeira vez, dela não, mas foi muuuuuuito bom. se eu soubesse que seria bom assim eu teria me permitido antes. ela disse que eu fui melhor que a ex namorada dela. também disse que fazia tempo que ela tava afim de mim, só que não sabia como fazer pra me falar e tava com medo de estragar nossa amizade. aí eu disse pra ela que fazia um tempo que eu tava afim dela, só que não sabia. enfim, não sei se estamos namorando ou não, mas eu realmente gosto dela e agora não tenho como esconder de mim mesma. mal vejo a hora pra estar com ela de novo.

aí, continuando a história porque eu me perdi aí no meio, dormimos juntas de novo e acordei de manhãzinha com o telefone tocando. era meu pai, falou que estava no hospital com a minha mãe e que meu tio viria pra cá pra me buscar e levar a elisa pra casa dela. eu fiquei assustada, porque o tom de voz do meu pai tava mais estranho que o normal. nos arrumamos, antes do meu tio chegar a elisa me abraçou bem forte e disse que ela sempre estaria lá pra mim. eu achei bonito, fiz carinho na bochecha dela e a beijei de novo, daí eu respondi que eu sabia e falei que eu gostava dela.

aí meu tio chegou, deixou a elisa na casa dela e foi comigo pro hospital. chegamos lá, encontramos meu pai sentado, segurando com com as mãos a cabeça abaixada. quando ele levantou, deu pra ver que ele estava chorando. na hora eu entendi que a minha mãe tinha ido embora. meus olhos encheram de lágrimas e eu fui lá abraçá-lo. falei que ia ficar tudo bem e que eu estava lá pra ele. ele não sabia o que fazer, estava pior que eu. ele pediu pro meu tio tomar conta das coisas do enterro e documentos e essas coisas aí que só adultos entendem. meu tio falou pra irmos pra casa, meu pai foi dirigindo. ele parou numa padaria pra gente comer. ele não sabia muito bem o que fazer e eu disse pra ele que a gente ia conseguir levar as coisas, iria trabalhar em equipe e tudo mais. aí eu aproveitei que ele já tava meio triste e chocado demais e falei pra ele que eu estava gostando da elisa. ele olhou pra mim com cara de dúvida e perguntou que tipo de gostar que era. aí eu expliquei pra ele e ele falou que queria que eu fosse feliz e ainda achou melhor que fosse uma menina a um cara porque assim eu não chegaria grávida em casa. aí ele me abraçou e a gente foi pra casa.

quando a gente chegou em casa, ele pegou o telefone e ligou pra minha tia que conhece todo mundo e falou que a minha mãe tinha ido embora e pediu pra ela avisar todo mundo. eu diria que ele foi muito esperto na hora de escolher pra quem ligar, porque essa minha tia é mó fofoqueira. eu liguei pra elisa e contei o que tinha acontecido. ela ficou super preocupada e quis vir aqui, eu disse que não precisava, falei pra ela ficar coma família dela, afinal, era natal. aí, à tarde meu tio ligou falando que já estava tudo acertado, que o enterro seria hoje à tarde.

aí, à noite eu fiz um negócio pro meu pai comer, mandei ele parar de beber o uísque dele e ir dormir. ele me obedeceu e eu achei muito estranho, talvez as coisas já tenham mudado. daí eu entrei no msn e a elisa veio falar comigo, ver se eu tava bem mesmo. falei com ela até umas três da manhã pra assegurar que eu não ia fazer nada idiota, como ela tava dizendo que eu faria. gente, até parece que ela não me conhece.

aí, quando eu fui dormir que a ficha caiu. eu chorei muito, muito, muito. eu amo a minha mãe, ela foi uma mãe horrível e tudo mais, mas, tipo, ela não precisaria ter morrido por isso, sabe? enfim, eu tenho que descobrir como lidar com isso, porque eu ainda não descobri, meu terapeuta diria que eu estou negando o problema pra não ter que lidar com ele. bem, eu não discordaria disso.

agora vou parar de escrever porque eu preciso descobrir como uma filha deve ir vestida ao enterro de sua mãe. ainda bem que a elisa vai, senão eu não saberia como agir.

3.2.10

ensaio sobre a monotonia

eu deveria ter muito a dizer, mas nem tenho. eu tenho muito o que fazer, mas não faço. eu deveria ter os horários certos, mas não tenho. eu deveria ser brilhante, mas não sou. e eu poderia continuar indo com essa linha estúpida de pensamento adversativa por horas e horas e horas, mas não continuarei.

você deve estar se perguntando o que é esse tipo de coisa, quem sou eu e todas essas perguntas idiotas que as pessoas se fazem. eu poderia responder que eu sou o tudo e o nada, que essa coisa estranha sou eu e responder as suas perguntas da maneira que eu achasse mais engraçada. aí eu me pergunto: pra que?! pra provar que eu sou mais esperta que você? não, não preciso disso. tem coisas que não são necessárias que sejam provadas. aí você está pensando: "quem você acha que é pra dizer ser mais esperta que eu?", por eu ter descoberto o pensamento já se prova, perdão. se não era isso que você estava pensando, eu ainda sou mais esperta que você, pode ir tirando esse sorrisinho do rosto. eu sei que você está sorrindo. ôpa, agora parou. eu poderia dizer que estou me divertindo com isso, mas, sabe, é tudo tão previsível que perde a graça.

agora você deve estar achando que eu sou algum tipo de médium ou uma dessas pessoas que descobre o que as outras querem ou outras coisas, esse tipo que só existe em seriados americanos chatos. eu assisto a todos eles, mas eles continuam sendo chatos e previsíveis. como você, a minha mãe, minha melhor amiga... é tudo muito previsível. a vida em si é previsível. você nasce, cresce, enfrenta problemas existenciais, resolve alguns deles, se casa, tem mais problemas existenciais e alguns conjugais, tenta resolvê-los, não consegue e morre frustrado. tudo bem, eu sei que você acha que eu sou negativista. eu diria diferente, entretanto, sou realista. melhor do que se esconder num mundo de faz de conta igual a umas pessoas por aí. e por umas pessoas eu estou sendo bem generosa, quase todo mundo faz isso. é mais fácil se esconder a encarar a realidade medíocre em que todos somos obrigados a viver.

um dia desses eu encontrei alguém que eu achei que fosse imprevisível. depois de três dias de conversa eu vi que era mais previsível que a maioria, a única diferença é que essa pessoa se escondia mais do que os outros por ser mais problemática. bom, demorou três dias, eu costumo saber o perfil da pessoa em uma hora, mais ou menos. geralmente menos, mas se eu falasse que é só bater o olho em alguém e eu já saber qual é a da pessoa você iria me achar arrogante, e eu realmente não quero ter a imagem de arrogante. mas aquela pessoa me entreteu um pouco.

o fato é que é tudo tão previsível e todo mundo tem sempre o mesmo: os mesmos problemas, os mesmos traumas, os mesmos tudo... por tudo ser assim eu diria que a vida é muito... chata. você não tem ideia de como é chato olhar pra alguém e já saber o que essa pessoa vai fazer, vai querer, vai falar, como vai se sentir. tudo bem, não é sempre, às vezes elas me surpreendem, mas nem fica mais interessante por isso. geralmente esses rompentes são mínimos e são a segunda opção de presibilidade. sabe, quando existem duas opções e se escolhe por uma e acaba acontecendo a segunda? o que os torna quase tão chatos quanto as outras ações.

se você for pedante ou arrogante - ou os dois - aposto que está pensando que você não seria um objeto de pesquisa tão monótono. pelo menos você se esforçaria, e no seu esforço seria tão igual a todos os outros que tentam impressionar. desculpe. tudo se encaixa em padrões, esse é só mais um desses. não me entenda mal, até eu tenho meus padrões. são um pouco diferentes da maioria, mas são bem fáceis de serem identificados. tudo é chato e monótono, até eu. e não adianta, por mais que eu tente eu nunca conseguirei me impressionar comigo. tudo bem, isso é estúpido de se dizer, mas vai me falar que você nunca se impressionou consigo próprio? uma ação que você não esperava que faria? um sentimento que você jurou por tudo que jamais teria? acontece, não é sempre, mas acontece. comigo nunca acontece. eu sou sempre a mesma. e mesmo que eu mude, são mudanças já previstas.

tem gente que acha que eu sou médium, mãe dinah, cartomante, mãe de santo... eu só sou observadora, eu observo as coisas, sempre observei, desde criança. a culpa não é minha que não existam muitos padrões comportamentais. eu poderia ser serial killer ou alguém que caça serial killers, mas, ah, seria chato. sempre a mesma coisa: sujeito agressivo abusado quando criança ou não agressivo abusado quando criança. abuso infantil pode realmente ferrar mentes, tome conta dos seus filhos.

o que fica chato é que é tudo muito monótono. eu sei falar para qualquer pessoa o que ela quer ouvir, fazer o que ela quer que eu faça, só pra fazê-la feliz. ou eu posso também fazer qualquer pessoa fazer qualquer coisa que eu queira sem que ela perceba que eu estou indicando fortemente isso. mas, ah, é tão chato quanto todo resto...

minha coisa com a vida é que ela é monótona. são sempre as mesmas coisas, pessoas psicologicamente ferradas por causa de amor, ou então por causa de raiva, ou então porque elas não são felizes em como elas são e não tem a aprovação necessária. mas o que eu já adianto é que não tem ninguém sem problema psicológico algum. todo mundo é ferrado de alguma forma. e tudo tem a ver com amor/rejeição. eu duvido que você apareça com algum problema psicológico vindo de algo que não tenha a ver com uma dessas duas emoções. podemos discutir por alguns minutos e vamos lapidar o problema até chegar a uma dessas duas causas. é sempre assim, acredite em mim.

eu poderia ficar falando disso por horas e horas, mas seria tão chato quanto não ficar falando sobre isso com você. então eu acho que eu vou dormir. pelo menos na monotonia dos meus sonhos eu posso ganhar uma medalha numa olimpíada ou construir um tênis voador. agora, pra ser sincera, se alguém conseguisse construir um tênis voador eu ficaria surpresa.