26.5.10

o triste fim do pote de nutella

"você é meu nutella, é a dose diária que eu preciso de endorfina para conseguir viver durante o dia." ela disse em desespero pressentindo que aquela seria sua última conversa. estava triste, estupefatamente triste. tinha sobrancelhas, cenho, olhar que denotavam o tremendo descontentamento que ela sentia durante a conversa.

"mas você tem que entender que eu enjoei de nutella. tenho preferido sorvete ultimamente." ele resolveu ser gentil na hora de dizer que não gostava mais dela e que já estava com outra. "eu posso ser seu sorvete. você sabe que eu posso!" estava visivelmente desesperada, seus olhos gritavam por piedade, ajuda, qualquer coisa que a pudesse lhe tirar daquela situação. a angústia crescente vindo de seu tronco à garganta gerava aquele tom de voz típico de desesperados, o tom exato de quem implora pela vida diante de seu carrasco.

eles estavam no carro dele, ao portão da casa dela. ele havia tentado por vezes, ao longo do jantar, terminar com aquilo logo - todas sem sucesso -, tentou de forma clara e direta, com alusões, metáforas, algumas outras figuras de linguagem, toda e qualquer forma que ele achou que não seria tão rude quanto desenhar. "mas você não sabe ser sorvete, querida. você fica toda dura no frio, um duro que a colher não entra para pegar a parte mais gostosa. e sorvete, bem, sorvete casa com praticamente tudo. dá para fazer panetone de sorvete no natal, dá pra fazer sorvete empanado, dá para colocar qualquer cobertura, doce, fruta, chocolate e até nutella!". nessa hora os olhos dela marejaram, ela parecia algum animal acuado, indefeso, só esperando a hora que o predador tiraria-lhe a vida. naquele momento ela inspirava pena. "nutella combina com sorvete, tenha os dois!" ela estava desesperada, tentando se segurar na única linha que ainda não havia rompido e que dava sinais claros de que não aguentaria por muito tempo. "mas é sorvete de kiwi, kiwi não fica bem com nutella...".

olhou para ele com ultraje. "mas você disse que nutella ficava bom com tudo! agora não combina com kiwi?! então coma os dois separados!!". ele estava começando a ficar assustado, não encontrava qualquer jeito de dizer àquela mulher que ele estava se divertindo mais com outra. "querida, eu enjoei de nutella, preciso ficar um tempo sem para ver se eu sinto falta...". chorosa disse "mas você nem sabe se gosta mesmo de sorvete... ainda mais um tão exótico como kiwi!", ele desviou o olhar para o velocímetro e não conseguiu disfarçar o semblante de culpa. ela decidiu, então, usar do último artifício que poderia ter, pisoteando em cima de seu amor próprio por conta do desespero "eu sei que eu não posso viver sem você, e eu sei que eu nunca vou conseguir. eu não sei falar nada mais forte que eu te amo e que eu sei que ninguém que te ame possa te amar mais que eu. eu só quero estar com você."

ele se sentiu extremamente desconfortável com a declaração e tentou explicar de mais alguns jeitos menos incisivos, mas ela estava irredutível. cansado, entediado, incomodado, resolveu dar o golpe final misericordioso: "escuta, eu vou casar semana que vem. e não vai ser com você! dá pra entender isso, ou quer que eu desenhe?". ela o olhou com admiração e repulsa. pegou sua bolsa, saiu do carro e atirou a primeira coisa que poderia quebrar a janela que achou contra o carro.

ele saiu cantando pneus e ela entrou em casa, achou no armário da cozinha um pote de nutella pela metade. procurando uma colher, abriu a gaveta com tanta raiva que a derrubou. ao perceber a situação que estava, olhou para o pote em suas mãos e o atirou com fúria e desespero contra a parede. "filho da puta, me tirou até a nutella!"

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