19.5.09

dos sons e das cores

o som do queimar do cigarro contrastava com o som do cantar dos pássaros ao despertarem para mais um dia de trabalho. não dormira ou dormira muito pouco, não se lembrava direito. talvez esse branco na memória seria efeito de tantos cigarros consumidos com o estômago plenamente vazio e noites sem dormir que já tinham virado hábito comum para este ser humano que se julgava superior aos outros.

o cantar dos pássaros era irritante, irritantemente bonito, irritantemente alegre e feliz para aquela existência que ainda não achara o valor da tão falada felicidade. desejava acima de tudo ter a capacidade de desligar o cantar das aves como se tem ao desligar o rádio quando alguma música irritante é tocada.

ouvia sons disformes cinzamente coloridos conforme os primeiros raios de sol adentravam o recinto. os tons de cinza chocavam com sua imensa realidade cinza-sem-cor, cinza-sem-alegria, cinza-sem-forma que tomava conta de sua vida. e o cantar dos pássaros tão colorido, tão alegre, tão audível... era como um tapa na cara de tudo que poderia existir em sua vida mas que por um decreto passou a não fazê-lo.

a fumaça do cigarro entrava nos olhos, doía a alma, preenchia instantaneamente o vazio por segundos até ser expelida do corpo como algo que não serve mais. o cinzeiro recheado de pontas e restos de cigarros queimados era uma alusão plenamente verdadeira de sua vida, o conteúdo do cinzeiro poderia ser o conteúdo de sua alma debulhado e posto à mostra como em uma exposição de arte fiel da vida como ela é.

esvaziou o cinzeiro. esvaziou sua alma. acendeu outro cigarro para preencher de cinza-sem-vida a falta que o limpar do cinzeiro lhe trouxe. os pássaros cantavam, o sol entrava rapidamente pelo recinto e não acabava com o frio que sentia por seus ossos que lhe subia à espinha. uma criança chorou. finalmente um som que conseguiria compactuar. chorou chorou chorou. jorrava lágrimas pretas espessas e pegajosas que deixavam um rastro de dor que contrastava com o cinza de sua vida. passou a desgostar do choro da criança e começou a repeli-lo como ao cantar incessante dos pássaros. agora tinha o colorido e o negrume para lidar ao mesmo tempo e não gostou nem um pouco da idéia.

levantou. andou como um zumbi até o banheiro alvamente branco. olhou-se no espelho e jogou a primeira coisa que tinha em mãos para tirar a visão fantasmagórica de seus olhos. nada foi quebrado. se ao menos toalhas fossem mais rígidas... os pássaros cantavam coloridos do outro lado da janela. a criança chorava preto por todo ambiente. a torneira pingava sons disformes furtacor a cada pingo. ping. ping. ping. ping. ping. ping. pegou a primeira coisa sólida o suficiente e atirou contra o espelho.

o som do quebrar do espelho fez cessar por instantes o cantar colorido dos pássaros o choro negro e viscoso da criança o pingar furtacor da torneira e por um breve momento a paz reinou. mas o cantar colorido voltou como uma avalanche o choro viscosamente negro voltou a inundar o ambiente. o pingar voltou trazendo um arco-iris para dentro do banheiro alvamente branco. o cinza foi abalado por toda essa mistura de sons e cores.

agarrou um pedaço do espelho quebrado e enfiou sem cerimônia alguma em seu pescoço. o som do ar entrando diretamente pela traquéia preencheu o ambiente alvamente branco com um som vermelho-sangue, que teve o poder de fazer cessar progressivamente todos os outros sons e cores e o silêncio do cinza finalmente pôde reinar soberano naquela alma.

5 comentários:

Sabrine disse...

Pouts mano... conto bom... mas loucura hein??

saudades de vc...

otima semana!!

beijosS!

Carola disse...

sinistro!

Anônimo disse...

eu nao me mataria com um espelho... aliás, eu não me mataria de forma nenhuma!

fiquei imaginando o sangue lavando o banheiro branco e fiquei zonza, amo a minha imaginação....

Kitsune disse...

fiquei com aflição nessa última parte. Juro!

Sabrine disse...

Jô, te juro...
foi cruel na hora...depois eu ri mtoO!
uashuahauhas!
tadinha da luli, tah com as pernas roxas meo!! uahuashush!
mas ela se segurando no corrimão...nunca mais esqueço na vida!

te amo!