31.8.09

renascimento

"tenho problemas para dormir e problemas para acordar. é que quando eu estou dormindo, tudo que é real está latente e inoperante, é o único conforto que tenho tido ultimamente. não tenho amigos, não tenho romances, a única fonte de amor que eu tenho será retirada de mim logo. como eu sei isso? oras, associação. cada vez que eu afirmei com veemência que não tinha mais nada a perder, um tipo de coisa que eu tinha que considerava virtualmente parte de mim foi tirado. então, por eliminação eles são os próximos.

nunca disse a meus pais o quanto eles são importantes e o quanto eles me transformaram no tipo de ser humano que eu tento ser. não sou, admito, mas ao menos tento ser. minha mãe me ensinou a pensar, criticar, questionar, ser independente, ter minhas próprias escolhas com base nos meus próprios princípios e brios, me estimulou a ter um mínimo padrão de moral o qual retirado de mim me tornaria uma pessoa mais desprezível que o pior dos seres humanos. meu pai me ensinou a ter responsabilidade, me ensinou a enxergar como as coisas são ou deveriam ser, a ser persistente, abdicar de coisas que poderiam me fazer ter status ou mais felicidade instantânea por um bem maior e me ensinou que nada na vida vem de forma fácil, me mostrou sempre que eu normalmente teria que lutar para conseguir qualquer coisa que eu quisesse durante o período em que estivesse viva. resumindo, meus pais me ajudaram a formar minha personalidade e meu caráter. eles sempre foram uma boa equipe, cada um de seu jeito, logicamente, minha mãe sempre foi a extrovertida, quem sempre soube falar a coisa certa na hora certa para você continuar indo em frente e meu pai sempre esteve como um porto seguro, a âncora de tudo, estabilizando toda e qualquer situação, dando a impressão de que não importasse o que acontecesse, ele sempre estaria lá para fazer as coisas funcionarem de novo. eles também me ensinaram a me defender de todos de modo não tão convencionais: eles são tão irônicos e sarcásticos que além de me ensinarem a ter resposta para todas as ofensas e saber lidar com as mais diversas situações complexas e desagradáveis, os métodos não tão normais, digamos, me ajudaram a desenvolver um raciocínio rápido e sagaz para respostas que não dão vazão a tréplicas que foi devidamente posto em prática durante a adolescência. e hoje tive o desprazer de descobrir que eu só posso contar realmente com eles para qualquer situação que possa vir a se apresentar em minha vida. nunca os agradeci propriamente por isso, então lá vai: obrigada, pai. obrigada, mãe. ter vocês por perto é a única coisa que tem me mantido um pouco sã.

apesar disso, eles não podem fazer nada por mim agora, como ninguém mais no mundo pode. tenho que reaprender a viver, reaprender a ter uma visão específica das coisas mundandas, redescobrir como fazer para conseguir as coisas que eu quero, redesenhar todo o prospecto de vida que eu tive até hoje e discernir a realidade e passar a entender esse novo ponto de vista tão absurdo que se instaurou em mim. é um caminho sem volta, então tenho que aprender a viver com ele antes que seja tarde e eu seja internada em uma clínica psicológica ou tenha que tomar barbitúricos para não começar a ver gente que não existe ou ter acessos psicóticos perigosos.

e não, não quero sua sugestão para a melhor forma de viver minha vida. estou lhe retirando esse direito, vá viver a sua própria e faça bom proveito dela. e não me venha com suas conclusões, não me estenda sua mão. quando eu mais precisei você não o fez, e tinha dito anteriormente que faria. abdico de sua amizade e lhe privo do que eu poderia lhe proporcionar.

abdico de meus sonhos, de minhas ambições, de minhas preferências, abdico de minha vida como um todo. talvez eu consiga vir a formar uma nova, a qual você não fará parte. desculpe se isso tudo soa muito hostil, mas retribuo da forma em que fui tratada durante todo esse tempo. não quero mais você por perto.

não há necessidade de despedir-me de forma hipócritamente falsa e gentil.
espero nunca mais saber de você."





ao mesmo tempo que a carta foi entregue pelo correio o telefone tocou informando que houvera um acidente e que ambos ocupantes do veículo haviam falecido instantaneamente. quanto a ela: enlouqueceu de vez, não tinha mais o porto seguro em casa. virou moradora de ruas e por elas vagou pedindo dinheiro para comer, fedia mais que um gambá, tinha seis amigos imaginários, cinco, na verdade, porque um deles era muito má pessoa e vivia falando coisas erradas dela pelos cantos.

ela nunca sentiu falta de ninguém, sua vida que já estava por um fio acabara de vez com o tocar do telefone daquele dia. ela era uma morta-viva, sem nenhuma razão ou ambição para viver e era feliz assim.






esse conto é meramente fictício, qualquer associação a um conhecido é problema seu e não foi intenção da escritora fazê-lo.

28.8.09

abandono

abandonei a vida, os sonhos, os amigos, as coisas que importavam e parei de escrever.


um beijo. até um dia.




- não, essas coisas nunca são sérias.

24.8.09

conversa de família

depois de chegar em casa, domingo à noite, sem ver sua mãe desde sexta feira, a progenitora indaga:
- e aí, filha, tudo bem?
e a cria responde:
-tudo sim, mãe, e com você?
depois de cerca de três frases de conversa social, chega-se ao tema:
- pô, mãe, tomei vodka belga hoje.
a resposta:
- é? e eu tomei cerveja tcheca! imagina todo o gosto da cerveja sem aquele amargo ruim que tem normalmente...
- ah, mas aí nem é cerveja, cerveja é amarga. a vodka que eu tomei era tão suave que se colocasse gelo ficara muito aguada e intragável.
a conversa se extendeu por alguns minutos sobre a propriedade amarga da cerveja e terminou com um filme bem dramático.





- adoro minha família.

18.8.09

sabedoria popular

agraciado é aquele que depende do transporte público rodoviário paulistano! não, o transporte não é de extrema qualidade. não, a tarifa cobrada não condiz ao serviço oferecido. não, não tem conforto nem espaço suficiente. mas mesmo assim, agraciado é aquele que pode desfrutar de uma das mais intensas experiências que ocorrem em mega cidades. explicar-se-á o motivo de tanta graça para com os cidadãos paulistanos: quem não pega ônibus não passa pelas intensas experiências de medo, estresse, afobação, suspense, calor humano, paciência... e a lista se alonga infinitamente (com o perdão da hipérbole).

as pessoas que andam de carro não vivem o drama de saber se o último ônibus já saiu. é algo estonteante e digno de felicidade tremenda chegar ao ponto final e ver que ainda tem mais um ônibus para levar-lhe para o aconchego de seu tão querido lar. essa situação geralmente ocorre durante o começo das madrugadas, visto que os últimos ônibus partem entre 23:00 e duas da manhã. mas, se é sabido o horário do último ônibus, como ter expectativa de que ainda exista algum ativo para levá-lo? oras, lembre-se que falamos de são paulo, caro leitor, e nesta cidade nada é extamente como dizem que é. você pode chegar ao ponto e o ônibus já ter saído, isso mesmo, antes do horário. inconcebível? para quem mora nos grandes centros europeus talvez, aqui até achamos organizado e damos graças a deus pelo pouco de organização que se tem. e quando o último ônibus já saiu, como proceder? segundo um sábio dos transportes urbanos, se você está ferrado, pegue qualquer ônibus que possa deixá-lo o mais próximo possível de seu destino e cubra o resto do caminho à pé, às vezes pode-se até dar sorte de pegar outro ônibus no meio do caminho que lhe deixe mais perto de casa. perigoso? o que é da vida sem um pouco de perigo para sentir o sabor mais acentuado de estar vivo? encare o perigo como uma folha de louro no seu feijão, é até gostosinho sem, mas se colocam tudo fica mais saboroso.

se conseguir pegar o último ônibus o cidadão paulistano enfrenta o medo. mas medo por que, se ele já está dentro do coletivo? é devidamente lembrado que o último ônibus sai durante as primeiras horas da madrugada e nessas horas, nas grandes cidades, ninguém é de ninguém, ou melhor, nada é de ninguém, o seu celular, que é seu e você comprou com o seu suado dinheiro, pode não vir a ser mais seu antes que você tenha tido a chance de pedir ao amigo ladrão para dar-lhe o chip, o seu tocador de mídia pode não ser mais seu em questão de segundos e só perceber quando ouvir o barulho um tanto ensurdecedor do motor desregulado do veículo que lhe leva e trás todos os dias. expectativa, medo e drama, todos juntos. quando um homem entra no ônibus, passa por baixo da catraca e está de touca e boné, desista, você perdeu tudo, até os tênis. você jamais experienciaria tal tipo de situação sentado num cinema assistindo a um filme de suspense, imagine sentado no conforto do seu carro, com o ar condicionado ligado, as janelas fechadas e tocando no rádio sua música favorita. é melhor pegar ônibus, mais emocionante é, com certeza.

depois de passar por tais provações no começo da madrugada, quando nada de errado acontece e o contribuinte chega em casa aliviado e se sente agraciado por tanta sorte, é chegada a hora de dormir um pouco para enfrentar mais um dia de trabalho que começa na manhã seguinte. e lá vai o paulistano atravessar a cidade para chegar em seu local de trabalho - e é aqui que entra o calor humano. com os ônibus cheios de gente, é hora de provar que se sabe contorcionismo e tem a astúcia e o equilíbrio suficientes para não cair em cima de ninguém - uma vez que sair rolando corredor afora é algo inimaginável até mesmo para uma barata que está descansado ao alvorecer em seu ninho embaixo da última fileira de bancos. esse calor humano é algo que dá gosto de se ver, todos juntinhos, apertadinhos, se roçando freneticamente... tome cuidado com namoradas e namorados ciumentos, tanto calor humano junto pode ser considerado caso grave de adultério devido à quantidade de corpos amontoados se encostando. quando o tempo de calor humano é esgotado - com a duração mínima de meia hora - é hora de descer na sua parada, respirar o ar puro do centro da cidade e olhar para o relógio contente porque não está atrasado. é válido dizer que a mesma coisa acontece no fim do expediente, a única diferença é descer do ônibus contente porque vai conseguir assistir à novela naquele dia.

quem não anda de ônibus não pode perceber o gosto musical das pessoas, o coletivo vira praticamente uma discoteca com várias pistas de dança tamanho é o número de celulares tocando, no mais alto volume que o aparelho puder suportar, os mais variados tipos de música, mais variados com ressalvas, visto que ninguém jamais presenciou bach ou chopin tocando ao lado de funk. mas as combinações de funk, pagode, sertanejo, forró e todas essas vertentes populares estão com todas as forças disputando espaço com o barulho do motor e os outros sons que vem da rua. agora junte todos esses estilos musicais tocando simultaneamente, o calor humano, o perfume de fragrância praticamente animal que as pessoas exalam por seus poros e o calor proveniente do dia inteiro e você tem o estresse. quando chega a esse patamar é só alguém encostar um pedaço de corpo em outro pedaço de corpo não tão ortodoxo para começar um bate boca e, eventualmente, uma briga de verdade. e aí tem-se o show e entretenimento suficientes para chegar em casa de bom humor.

ah, o transporte metropolitano de são paulo! é tão bem equipado e condizente ao número de usuários que só uma coisa pode ser dita:

haja paciência!

15.8.09

17/06/07

mais de um mês sem escrever aqui. que dona de diário relapsa eu sou. tava relendo as coisas que eu já escrevi, já terminei três dos livros do harry potter. são super legais, mas o harry potter é muito bobão. vou terminar de ler todos os livros até o fim desse ano, prometo pra mim mesma.

minha mãe ainda tá pintando os quadros loucos e feios dela. ela tá meio que vivendo num mundo paralelo estranho, ela pinta, come, fala uma ou duas frases com as pessoas e só. meu pai leva ela toda semana ao psiquiatra, mas ela não parece melhorar nada. já falei pra internar, acho que agora ele tá me ouvindo. tem que ver o que ele vai decidir... eu tenho tentado dar força pra ele, mas nem sei se eu tô conseguindo, meu pai é meio estranho. pelo menos preocupação pra ele eu não tô dando. ele tá se fazendo de forte e tal, mas eu não acredito muito, ele deve estar bastante preocupado. acho que vou conversar com ele mais diretamente.

a elisa tá praticamente morando aqui à tarde. chegamos juntas da escola, pentelhamos um pouco a fabíola, almoçamos, estudamos, fazemos qualquer coisa que dê na telha e ela vai pra casa dela. mas a elisa é muito legal mesmo. todo mundo deveria ter uma amiga como ela, ela me ajuda com tudo! é incrível o que essa menina faz. me sinto tão segura com ela! ela me faz rir, me explica as coisas da escola que eu não entendo, me dá força pra conseguir segurar as pontas aqui em casa... não sei o que seria de mim sem ela por aqui. ela é minha melhor amiga, sem sombra de dúvidas.

semana que vem vão sair meus amigos, eu e a elisa, pra ela conhecer o pessoal, vai que tem alguma menina legal pra ela lá, ou até mesmo um menino, vai saber... tomara que ela ache logo alguém, ela é incrível demais pra ninguém querer nada com ela. joão não estará lá, todo mundo ficou de saco cheio dele. menino chato. que bom que ele não vai! ^^ mas seria engraçado ele olhando pra cara da elisa e ela fazendo cara de má pra ele.

eu tô indo super bem na escola, ligaram para meu pai e disseram para me parabenizar pela evolução e tal. meu pai ficou feliz e a hora de voltar pra casa quando eu saio com o pessoal passou a ser às onze, e não às dez. culpa da elisa, ela que fica estudando comigo. sério, se não fosse por ela eu não teria melhorado minhas notas.

ah! essa semana teve seminário. eu estava super nervosa, o grupo era de quatro pessoas, então fizemos eu, a elisa e mais dois meninos. como eu e a elisa fizemos o trabalho inteiro, nós falamos a maior parte, e eu tava mó nervosa, eu não sei falar em público, sou meio tímida. daí a elisa me deu uns toques, a professora elogiou tanto nossa apresentação e ficamos com a maior nota da sala. foi o máximo!

é, vou dormir que eu tenho aula amanhã, segunda feira começa com duas aulas de matemática, haja paciência pra não dormir.

11.8.09

a entrevista

parte dois


para ler a primeira parte, clique aqui
o repórter olhou com admiração o ser que estava sentado casualmente à sua frente e fez uma pergunta balbuciante, demonstrando todo medo que estava sentindo.

- vo-você está há muito te-tempo neste cargo?
a resposta foi imediata:
- rapaz, não há necessidade de medo, se acalme um pouco, nada será feito com você. o acordo de responder todas às perguntas sem represálias será mantido. acalme-se um pouco para que essa experiência possa ser proveitosa para nós dois. quanto à pergunta, três milênios.

- obrigado. três milênios? não é muito tempo?

- não, para meu tipo de vida. para você é mais tempo que o concebível para qualquer forma de ser vivo.

- você nunca se cansou de estar no seu posto? aliás, como você chegou nele?

- se cansar é muito relativo, rapaz, é algo que você, com sua experiência de vida, não entenderia. cheguei no meu posto na mesma forma que todos chegam: fiz um bom trabalho sempre e me concederam o posto que todos aqui almejam. depois de muitos anos e muitas promoções e a indicação dos meu antecessor, cá estou. acho que tenho feito um bom trabalho.

- você disse que foi indicado por seu antecessor, como isso funciona? tem tempo de mandato? você indicará alguém? como é a aposentadoria?

- oras, é como num trabalho da sua dimensão, os indicados têm maiores chances de conseguirem, exatamente o mesmo daqui. eu provavelmente indicarei alguém, mas não compete a mim fazer com que assuma o cargo ou não, compete ao grande superior, ele manda em tudo. o tempo que se fica no cargo é indeterminado, as ordens sempre vem de cima. a aposentadoria eu ainda não sei. quando chegar a hora, você volta e me pergunta, pode ser?

- como é ser odiado e temido por todos?

-olha, rapaz, você se acostuma. se torna meio implícito que, se você vai fazer o trabalho sujo de deus, você ganhe algumas inimizades. então a parte do ódio e temor passam a ser normais, além de ser parte do nosso trabalho colocá-los na cabeça dos seres da sua dimensão.

- trabalho sujo de deus? como assim?

- sabe todas as desgraças que acontecem no seu mundo? são vontades de deus. mas ele não quer que o nome dele fique escrito lá, ia sujar a imagem que todos têm dele, isso não seria proveitoso para ele, então ele criou esse regimento que eu chefio para fazê-las.

- entendo. e como foi criado esse departamento?

- um dia, deus resolveu que começaria a punir o que ele chamava de "modelos da perfeição jamais alcançada", isso mesmo, sua raça. resolveu punir porque ele estava todo orgulhoso do melhor trabalho já feito por ele, e, bem... olhe para o seu mundo e verá que se aquele era o melhor trabalho dele - e já era a quinta tentativa, ele tinha dizimado os outros projetos sumariamente -, ele deveria ser deposto. então ele resolveu começar a punir os transgressores para ver se eles aprendiam na marra. mas ele não poderia fazer isso pessoalmente. você sabe, ele é o mocinho da história, ele lhes deu vida, um mundo bonito e todas as coisas boas, ele não poderia simplesmente começar a fazer o mal para vocês, sem que vocês ficassem ressentidos com ele e sem que vocês duvidassem dele. então ele conversou com um vassalo que tinha uma inclinação um tato sádica e o nomeou como diabo, o deus do mal, e começou a passar ordens para ele de como punir os transgressores. e assim foi criado o que vocês chamam de inferno.

- então seu trabalho como diabo é realizar única e somente o que deus manda?

- basicamente, sim. mas tenho outros afazeres, que foram concedidos pelo próprio deus, para facilitar a distribuição dos castigos. eu incito o ódio, a inveja, a cobiça, enfim, todos os sentimentos ruins que vocês têm, somente para testá-los. o maior problema de vocês, entretanto, é o maniqueísmo exagerado: o que não é bom, é mau. ah, isso me cansa absurdamente.

- e os dez mandamentos de deus? as regras que ele impôs para nós, da onde isso veio?

- rapaz, veio de qualquer lugar, menos de deus. sabe, ele não daria ordens tão cretinas quanto os dez mandamentos. acho que isso foi trabalho de algum estagiário querendo mostrar serviço. acho que ele foi destituído do cargo, porque, bem, o estrago que ele causou com essa coisa de mostrar a um messias o que todos deveriam fazer foi absolutamente estúpido. alguns acharam que fui eu quem mandou, mas eu jamais daria ordens tão cretinas sobre essas coisas. uma prova que deus não mandaria essas ordens: "não matarás", oras, se ele achava que vocês fossem tão evoluídos como ele pensou, ele não precisaria dar essa ordem, vocês já saberiam disso, sem ter que ser falado. e ele conhece a raça de vocês o suficiente para saber que se colocar um "não" em alguma regra é o mesmo que falar: "faça, por favor, estou implorando!". não seria algo muito esperto vindo de alguém que está no maior cargo de todos. e foi exatamente nessa ocasião que o chefe de todos desistiu de vocês.

- desistiu de nós? como assim?

- é. antes dessa idiotice toda dos mandamentos vocês até tinham futuro. ele até tentou mais um pouco, mas não funcionou bem. desde então ele deixou a meu cargo provar cada um de vocês para ver quais eram os poucos que sobravam que não tivessem sido corrompidos pela babaquice do estagiário e dentro em breve haverá uma grande peneira sobre quem é digno de continuar e quem não é. aí, os que sobrarem vão ser colocados no plano inicial novamente, o que eu achei uma decisão acertada dele. sugestão minha, por conhecer todos os podres de vocês como ninguém, fico feliz que ele tenha dado atenção às minhas sugestões. não demorará muito mais, no máximo uns cinquenta, cem anos. quando o plano for posto em prática novamente, dessa vez acredito que será bem sucedido.

- você está sugerindo que será o fim do mundo?

- o fim do mundo não, rapaz, o mundo da forma que você conhece provavelmente sim, mas não o fim do mundo de explosões do jeito que vocês tanto imaginam. grande parte de vocês morrerá, sabe-se lá o que deus vai fazer com os que perecerem, não me interessa, na verdade, mas a parte que continuar viva vai fazer com que eu não tenha mais trabalho com a dimensão de vocês. ou serei destituído do cargo, transferido para outro mundo, ou haverá uma grande mudança por aqui e meu cargo será totalmente reconfigurado. ainda não foi decidido nada, teremos que primeiro ver como vocês se comportarão depois da reforma que faremos no seu mundo. os preparativos já estão sendo ajeitados.

- que tipo de coisa poderemos esperar? e quem está coordenando os preparativos?

- os meios para os fins que queremos obter não me é permitido falar, o todo poderoso não queria nem que eu falasse dos planos, mas eu disse que os conhecia bem o suficiente para saber que sua publicação com essa entrevista será um passo acertado nosso, mais do que revelação de planos do além para vocês, vocês não acreditam em nada mesmo... mas quem está coordenando os preparativos sou eu mesmo. garanto que será uma grande festa. espero que você esteja vivo para presenciar, até eu gostaria de estar no seu mundo na época da reforma. divertido, divertido... há tempos não tinha divertimento assim.

- você se diverte com essas coisas ruins? o senhor não me parece ser um sádico que gosta do sofrimento alheio...

- não sou mesmo, rapaz, obrigado por não me julgar errado. coisas ruins... maniqueísmo, vocês precisam parar de pensar assim. é ruim tirar o que não presta de algo que tem todas as características necessárias para ser o melhor? não, na minha singela opinião, mas vou lhe explicar o que acontece pelo meu ponto de vista para ser interessante: imagine que você tinha bastante divertimento no começo do seu trabalho porque tudo era novo. cada erro absurdo que vocês cometiam! ah, como eu me divertia em fazer com que vocês aprendessem. sabe, acima de tudo, sou educador, se vocês chegaram até onde vocês chegaram em todas as coisas boas, é culpa minha. deus só dá ordens, eu que tenho que me superar para conseguir colocá-las em prática. mas, voltando, imagine que você vê os mesmos erros sendo cometidos sucessivamente por milênios. uma hora você cansa e quer acabar com todos os indignos de estarem em um mundo tão incrivelmente belo. e, finalmente, me foi permitido fazer.

- e como são feitas as punições?

- sofrimento. vocês só funcionam assim. só aprendem estando estraçalhados por dentro. tentamos fazer de todas as formas possíveis antes de apelar para essa, e, incrivelmente, é a forma mais eficaz com vocês. às vezes acho que vocês são como um projeto de escola de um garoto de doze anos: quem projetou imaginou o melhor, tentou o melhor, mas saiu uma coisa tão mal feita que dá até vergonha...

- obrigado pela parte que me toca! deus já planejou outros mundos com outros seres?

- rapaz, a crítica não foi para você pessoalmente. você acha que você foi selecionado para estar aqui sem razão? já lhe testei diversas vezes e você parece tão virtuoso como um cavaleiro que jamais existiu na inglaterra feudal. quanto à pergunta: já. mas o seu, por incrível que pareça, é o menos evoluído e com mais chances de atingir a perfeição que ele queria no começo. isso se a reforma der certo... se não der, não faço idéia do que possa vir a acontecer com vocês, só sei que não me importo muito.

- uma curiosidade pessoal, os grandes líderes que dizimaram muitas pessoas, como funciona?

- são alguns seres humanos mais toscos que o habitual, mas com algumas características exacerbadamente boas. digo toscos porque são tão sem qualquer fibra moral que esperamos de vocês que dá até gosto vê-los tomando o poder e agindo contra os que eles julgam inferiores ou inaptos a estarem vivos. mas devo dizer que a culpa é dos outros toscos sem melhores características deixá-los permanecerem ao poder. a culpa de tudo que acontece no mundo é única e exclusivamente de vocês. meu trabalho é testá-los. há os que passam nos testes com menção honrosa, os que passam de forma normal, os que passam raspando e, a grande maioria, os que não passam. então, os grandes estadistas que não tem a fibra moral esperada, mas que nem assim deixam de ser brilhantes em alguns aspectos, conseguem perceber essa distinção entre vocês - de forma deturpada, devo dizer - e começam a fazer a "limpa". totalmente errados, mas deles dá para tirar uma prova que entre vocês ainda existem os que se salvam, até mesmo para os meus padrões.

- e quais são seus padrões?

- meus padrões são altos, devido a minha criação e educação por aqui. quase todos aqui são dessa maneira, mas meus padrões são ainda mais altos. eu tenho gosto por coisas executadas à melhor forma que é possível respeitando os limites de quem as executa. aceito a limitação de vocês, mas só dos que se puxam além do limite que vocês costumam se impor. esses poucos merecem meu respeito, mas são tão incompreendidos por vocês. ninguém os dá o devido valor para eles que alguns deles tombam e começam a fazer o meu trabalho por conta própria, outros usam essa rejeição para algo maior e se tornam indivíduos realmente respeitáveis. eu gosto de quem não se limita a ser o que consegue ser, respeito quem quer sempre mais de si mesmo, ignoro quem se contenta com o que tem - preste atenção, não estou falando da parte material da coisa -, quem quer sempre evoluir. a maioria de vocês não é dotada dessas características. então eu respeito poucos da sua raça.

- e como é seu dia a dia? quais são suas tarefas diárias?

- como todo chefe de departamento - aqui ou no seu mundo - tenho que delegar muitas funções e só tomo conta das coisas que são realmente muito importantes e recebo relatórios diários de tudo que foi feito. às vezes tenho que consertar uma ou outra cagada feita por estagiários, aliás, importamos esse termo de vocês, é bom ter um nome mais condizente às bostas que eles fazem enquanto aprendem, mas meu tempo tem sido praticamente todo tomado pela preparação da reforma.

- você terá algum mérito pela reforma, se ela for bem sucedida?

- provavelmente não.

- e por que está se empenhando tanto?

- curiosidade... quero saber se estou julgando mau os poucos que vão sobrar. é só para ver se eu vou me decepcionar com eles ou não, porque realmente tenho expectativas com esses que foram lapidados por si próprios o suficiente para conseguir passar pela peneira, para ver o que eles conseguirão fazer depois. ou ver que a podridão de vocês não é culpa de vocês, mas sim de quem os criou. o que eu realmente espero que não, espero que alguns de vocês tenham evoluído o suficiente para suprimir as falhas da criação sozinhos.

- vejo que você é um ser de princípios, senhor diabo.

- sou, rapaz, tanto quanto você. você é um dos poucos a quem eu concedi o privilégio de uma entrevista, já que você é...

nessa hora houve uma batida à porta e um vassalo entrou e interrompeu:

- senhor, sinto lhe informar que a autorização que estávamos esperando chegou, é iminente o começo da preparação dela.

- em alguns instantes estarei na sala de reuniões. faça com que todos estejam lá quando eu chegar, sim?

voltou a encarar o repórter e disse:

- bem, rapaz, é chegada a hora de eu ir ao trabalho. digo-lhe que foi um prazer conversar com você, fez perguntas inteligentes ao contrário daquele carrilhão de perguntas estúpidas que vocês geralmente fazem. não é à toa que eu escolhi você para conceder essa entrevista.

- obrigado, senhor.

- um vassalo virá lhe ajudar a voltar para seu mundo, não se preocupe. tenho que ir.

o diabo se retirou e foi cuidar de seus afazeres, o repórter voltou ao mundo e publicou sua matéria - que vendeu muito bem e lhe concedeu imensos prêmios, por mais que todos acreditassem que eram devaneios de um futuro escritor exotérico - e publicou um livro sobre sua experiência.

quanto aos planos do além para o mundo, todos correram exatamente como o diabo previra. ele ficou contente com os resultados e, como também previra, fora destituído de seu cargo com méritos e gozou de sua aposentadoria precoce. segundo deus, o novo diabo - que não se chamaria assim - teria uma nova postura, mais apaziguadora, com mais compaixão que o diabo precedente não faria por questão de princípios. o novo diabo acabou sendo aquele que olhara com compaixão à porta da sala de entrevistas, sendo aquele momento o que decidira a favor dele no futuro que se fez presente.