11.8.09

a entrevista

parte dois


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o repórter olhou com admiração o ser que estava sentado casualmente à sua frente e fez uma pergunta balbuciante, demonstrando todo medo que estava sentindo.

- vo-você está há muito te-tempo neste cargo?
a resposta foi imediata:
- rapaz, não há necessidade de medo, se acalme um pouco, nada será feito com você. o acordo de responder todas às perguntas sem represálias será mantido. acalme-se um pouco para que essa experiência possa ser proveitosa para nós dois. quanto à pergunta, três milênios.

- obrigado. três milênios? não é muito tempo?

- não, para meu tipo de vida. para você é mais tempo que o concebível para qualquer forma de ser vivo.

- você nunca se cansou de estar no seu posto? aliás, como você chegou nele?

- se cansar é muito relativo, rapaz, é algo que você, com sua experiência de vida, não entenderia. cheguei no meu posto na mesma forma que todos chegam: fiz um bom trabalho sempre e me concederam o posto que todos aqui almejam. depois de muitos anos e muitas promoções e a indicação dos meu antecessor, cá estou. acho que tenho feito um bom trabalho.

- você disse que foi indicado por seu antecessor, como isso funciona? tem tempo de mandato? você indicará alguém? como é a aposentadoria?

- oras, é como num trabalho da sua dimensão, os indicados têm maiores chances de conseguirem, exatamente o mesmo daqui. eu provavelmente indicarei alguém, mas não compete a mim fazer com que assuma o cargo ou não, compete ao grande superior, ele manda em tudo. o tempo que se fica no cargo é indeterminado, as ordens sempre vem de cima. a aposentadoria eu ainda não sei. quando chegar a hora, você volta e me pergunta, pode ser?

- como é ser odiado e temido por todos?

-olha, rapaz, você se acostuma. se torna meio implícito que, se você vai fazer o trabalho sujo de deus, você ganhe algumas inimizades. então a parte do ódio e temor passam a ser normais, além de ser parte do nosso trabalho colocá-los na cabeça dos seres da sua dimensão.

- trabalho sujo de deus? como assim?

- sabe todas as desgraças que acontecem no seu mundo? são vontades de deus. mas ele não quer que o nome dele fique escrito lá, ia sujar a imagem que todos têm dele, isso não seria proveitoso para ele, então ele criou esse regimento que eu chefio para fazê-las.

- entendo. e como foi criado esse departamento?

- um dia, deus resolveu que começaria a punir o que ele chamava de "modelos da perfeição jamais alcançada", isso mesmo, sua raça. resolveu punir porque ele estava todo orgulhoso do melhor trabalho já feito por ele, e, bem... olhe para o seu mundo e verá que se aquele era o melhor trabalho dele - e já era a quinta tentativa, ele tinha dizimado os outros projetos sumariamente -, ele deveria ser deposto. então ele resolveu começar a punir os transgressores para ver se eles aprendiam na marra. mas ele não poderia fazer isso pessoalmente. você sabe, ele é o mocinho da história, ele lhes deu vida, um mundo bonito e todas as coisas boas, ele não poderia simplesmente começar a fazer o mal para vocês, sem que vocês ficassem ressentidos com ele e sem que vocês duvidassem dele. então ele conversou com um vassalo que tinha uma inclinação um tato sádica e o nomeou como diabo, o deus do mal, e começou a passar ordens para ele de como punir os transgressores. e assim foi criado o que vocês chamam de inferno.

- então seu trabalho como diabo é realizar única e somente o que deus manda?

- basicamente, sim. mas tenho outros afazeres, que foram concedidos pelo próprio deus, para facilitar a distribuição dos castigos. eu incito o ódio, a inveja, a cobiça, enfim, todos os sentimentos ruins que vocês têm, somente para testá-los. o maior problema de vocês, entretanto, é o maniqueísmo exagerado: o que não é bom, é mau. ah, isso me cansa absurdamente.

- e os dez mandamentos de deus? as regras que ele impôs para nós, da onde isso veio?

- rapaz, veio de qualquer lugar, menos de deus. sabe, ele não daria ordens tão cretinas quanto os dez mandamentos. acho que isso foi trabalho de algum estagiário querendo mostrar serviço. acho que ele foi destituído do cargo, porque, bem, o estrago que ele causou com essa coisa de mostrar a um messias o que todos deveriam fazer foi absolutamente estúpido. alguns acharam que fui eu quem mandou, mas eu jamais daria ordens tão cretinas sobre essas coisas. uma prova que deus não mandaria essas ordens: "não matarás", oras, se ele achava que vocês fossem tão evoluídos como ele pensou, ele não precisaria dar essa ordem, vocês já saberiam disso, sem ter que ser falado. e ele conhece a raça de vocês o suficiente para saber que se colocar um "não" em alguma regra é o mesmo que falar: "faça, por favor, estou implorando!". não seria algo muito esperto vindo de alguém que está no maior cargo de todos. e foi exatamente nessa ocasião que o chefe de todos desistiu de vocês.

- desistiu de nós? como assim?

- é. antes dessa idiotice toda dos mandamentos vocês até tinham futuro. ele até tentou mais um pouco, mas não funcionou bem. desde então ele deixou a meu cargo provar cada um de vocês para ver quais eram os poucos que sobravam que não tivessem sido corrompidos pela babaquice do estagiário e dentro em breve haverá uma grande peneira sobre quem é digno de continuar e quem não é. aí, os que sobrarem vão ser colocados no plano inicial novamente, o que eu achei uma decisão acertada dele. sugestão minha, por conhecer todos os podres de vocês como ninguém, fico feliz que ele tenha dado atenção às minhas sugestões. não demorará muito mais, no máximo uns cinquenta, cem anos. quando o plano for posto em prática novamente, dessa vez acredito que será bem sucedido.

- você está sugerindo que será o fim do mundo?

- o fim do mundo não, rapaz, o mundo da forma que você conhece provavelmente sim, mas não o fim do mundo de explosões do jeito que vocês tanto imaginam. grande parte de vocês morrerá, sabe-se lá o que deus vai fazer com os que perecerem, não me interessa, na verdade, mas a parte que continuar viva vai fazer com que eu não tenha mais trabalho com a dimensão de vocês. ou serei destituído do cargo, transferido para outro mundo, ou haverá uma grande mudança por aqui e meu cargo será totalmente reconfigurado. ainda não foi decidido nada, teremos que primeiro ver como vocês se comportarão depois da reforma que faremos no seu mundo. os preparativos já estão sendo ajeitados.

- que tipo de coisa poderemos esperar? e quem está coordenando os preparativos?

- os meios para os fins que queremos obter não me é permitido falar, o todo poderoso não queria nem que eu falasse dos planos, mas eu disse que os conhecia bem o suficiente para saber que sua publicação com essa entrevista será um passo acertado nosso, mais do que revelação de planos do além para vocês, vocês não acreditam em nada mesmo... mas quem está coordenando os preparativos sou eu mesmo. garanto que será uma grande festa. espero que você esteja vivo para presenciar, até eu gostaria de estar no seu mundo na época da reforma. divertido, divertido... há tempos não tinha divertimento assim.

- você se diverte com essas coisas ruins? o senhor não me parece ser um sádico que gosta do sofrimento alheio...

- não sou mesmo, rapaz, obrigado por não me julgar errado. coisas ruins... maniqueísmo, vocês precisam parar de pensar assim. é ruim tirar o que não presta de algo que tem todas as características necessárias para ser o melhor? não, na minha singela opinião, mas vou lhe explicar o que acontece pelo meu ponto de vista para ser interessante: imagine que você tinha bastante divertimento no começo do seu trabalho porque tudo era novo. cada erro absurdo que vocês cometiam! ah, como eu me divertia em fazer com que vocês aprendessem. sabe, acima de tudo, sou educador, se vocês chegaram até onde vocês chegaram em todas as coisas boas, é culpa minha. deus só dá ordens, eu que tenho que me superar para conseguir colocá-las em prática. mas, voltando, imagine que você vê os mesmos erros sendo cometidos sucessivamente por milênios. uma hora você cansa e quer acabar com todos os indignos de estarem em um mundo tão incrivelmente belo. e, finalmente, me foi permitido fazer.

- e como são feitas as punições?

- sofrimento. vocês só funcionam assim. só aprendem estando estraçalhados por dentro. tentamos fazer de todas as formas possíveis antes de apelar para essa, e, incrivelmente, é a forma mais eficaz com vocês. às vezes acho que vocês são como um projeto de escola de um garoto de doze anos: quem projetou imaginou o melhor, tentou o melhor, mas saiu uma coisa tão mal feita que dá até vergonha...

- obrigado pela parte que me toca! deus já planejou outros mundos com outros seres?

- rapaz, a crítica não foi para você pessoalmente. você acha que você foi selecionado para estar aqui sem razão? já lhe testei diversas vezes e você parece tão virtuoso como um cavaleiro que jamais existiu na inglaterra feudal. quanto à pergunta: já. mas o seu, por incrível que pareça, é o menos evoluído e com mais chances de atingir a perfeição que ele queria no começo. isso se a reforma der certo... se não der, não faço idéia do que possa vir a acontecer com vocês, só sei que não me importo muito.

- uma curiosidade pessoal, os grandes líderes que dizimaram muitas pessoas, como funciona?

- são alguns seres humanos mais toscos que o habitual, mas com algumas características exacerbadamente boas. digo toscos porque são tão sem qualquer fibra moral que esperamos de vocês que dá até gosto vê-los tomando o poder e agindo contra os que eles julgam inferiores ou inaptos a estarem vivos. mas devo dizer que a culpa é dos outros toscos sem melhores características deixá-los permanecerem ao poder. a culpa de tudo que acontece no mundo é única e exclusivamente de vocês. meu trabalho é testá-los. há os que passam nos testes com menção honrosa, os que passam de forma normal, os que passam raspando e, a grande maioria, os que não passam. então, os grandes estadistas que não tem a fibra moral esperada, mas que nem assim deixam de ser brilhantes em alguns aspectos, conseguem perceber essa distinção entre vocês - de forma deturpada, devo dizer - e começam a fazer a "limpa". totalmente errados, mas deles dá para tirar uma prova que entre vocês ainda existem os que se salvam, até mesmo para os meus padrões.

- e quais são seus padrões?

- meus padrões são altos, devido a minha criação e educação por aqui. quase todos aqui são dessa maneira, mas meus padrões são ainda mais altos. eu tenho gosto por coisas executadas à melhor forma que é possível respeitando os limites de quem as executa. aceito a limitação de vocês, mas só dos que se puxam além do limite que vocês costumam se impor. esses poucos merecem meu respeito, mas são tão incompreendidos por vocês. ninguém os dá o devido valor para eles que alguns deles tombam e começam a fazer o meu trabalho por conta própria, outros usam essa rejeição para algo maior e se tornam indivíduos realmente respeitáveis. eu gosto de quem não se limita a ser o que consegue ser, respeito quem quer sempre mais de si mesmo, ignoro quem se contenta com o que tem - preste atenção, não estou falando da parte material da coisa -, quem quer sempre evoluir. a maioria de vocês não é dotada dessas características. então eu respeito poucos da sua raça.

- e como é seu dia a dia? quais são suas tarefas diárias?

- como todo chefe de departamento - aqui ou no seu mundo - tenho que delegar muitas funções e só tomo conta das coisas que são realmente muito importantes e recebo relatórios diários de tudo que foi feito. às vezes tenho que consertar uma ou outra cagada feita por estagiários, aliás, importamos esse termo de vocês, é bom ter um nome mais condizente às bostas que eles fazem enquanto aprendem, mas meu tempo tem sido praticamente todo tomado pela preparação da reforma.

- você terá algum mérito pela reforma, se ela for bem sucedida?

- provavelmente não.

- e por que está se empenhando tanto?

- curiosidade... quero saber se estou julgando mau os poucos que vão sobrar. é só para ver se eu vou me decepcionar com eles ou não, porque realmente tenho expectativas com esses que foram lapidados por si próprios o suficiente para conseguir passar pela peneira, para ver o que eles conseguirão fazer depois. ou ver que a podridão de vocês não é culpa de vocês, mas sim de quem os criou. o que eu realmente espero que não, espero que alguns de vocês tenham evoluído o suficiente para suprimir as falhas da criação sozinhos.

- vejo que você é um ser de princípios, senhor diabo.

- sou, rapaz, tanto quanto você. você é um dos poucos a quem eu concedi o privilégio de uma entrevista, já que você é...

nessa hora houve uma batida à porta e um vassalo entrou e interrompeu:

- senhor, sinto lhe informar que a autorização que estávamos esperando chegou, é iminente o começo da preparação dela.

- em alguns instantes estarei na sala de reuniões. faça com que todos estejam lá quando eu chegar, sim?

voltou a encarar o repórter e disse:

- bem, rapaz, é chegada a hora de eu ir ao trabalho. digo-lhe que foi um prazer conversar com você, fez perguntas inteligentes ao contrário daquele carrilhão de perguntas estúpidas que vocês geralmente fazem. não é à toa que eu escolhi você para conceder essa entrevista.

- obrigado, senhor.

- um vassalo virá lhe ajudar a voltar para seu mundo, não se preocupe. tenho que ir.

o diabo se retirou e foi cuidar de seus afazeres, o repórter voltou ao mundo e publicou sua matéria - que vendeu muito bem e lhe concedeu imensos prêmios, por mais que todos acreditassem que eram devaneios de um futuro escritor exotérico - e publicou um livro sobre sua experiência.

quanto aos planos do além para o mundo, todos correram exatamente como o diabo previra. ele ficou contente com os resultados e, como também previra, fora destituído de seu cargo com méritos e gozou de sua aposentadoria precoce. segundo deus, o novo diabo - que não se chamaria assim - teria uma nova postura, mais apaziguadora, com mais compaixão que o diabo precedente não faria por questão de princípios. o novo diabo acabou sendo aquele que olhara com compaixão à porta da sala de entrevistas, sendo aquele momento o que decidira a favor dele no futuro que se fez presente.

2 comentários:

Anônimo disse...

gosto da sua criatividade! apesar de eu não ter entendido o final por estar com sono demais eu achei o texto muito bom

Denis Cristian disse...

A entrevista toda ficou mto boa.
Como já te disse, acho que deveria ter feito parte 2 e 3 pra não ficar longa.
Mas depois de ler tudo e ver as descrições, pergunto-lhe: Qdo sai um livro ?=D

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