5.7.10

o bolo

era aniversário de casamento de seus pais, dia catorze de outubro, cinquenta anos de união feliz, estável, respeitosa. ela não sabia, mas eles faziam sexo até a presente data, sua mãe nunca olhou para qualquer homem e seu pai jamais quebrou os votos que fez no dia em que disseram sim na frente de um homem todo vestido de preto.

ela era cheff de doces de um dos melhores restaurantes, sendo condecorada com prêmios algumas vezes durante sua rápida carreira. diziam que seus doces eram enviados por deus, jeová, maomé, mao tsé-tung, fidel castro porque eram quase tão bons quanto os doces que o senhor josé do boteco fazia. ninguém dizia que os ovos em conserva dele eram infinitamente mais saborosos e coloridos que os doces, mas o senhor josé também não gostava deste tipo de publicidade.

logicamente ela foi encarregada de fazer todos os doces da festa, uma vez que o senhor josé fora um desafeto na família desde que ele deu em cima de sua mãe por três anos consecutivos, outra vez porque ele cobraria preços exorbitantes que ninguém estaria disposto a pagar. todos acharam melhor manter as coisas em família, daria um ar de intimidade aconchegante para a festa de quinhentas pessoas que viriam - das quais trezentas e setenta e nove eram totalmente desconhecidas mas tinham status.

ela formou uma equipe com os melhores designers de doces, cozinheiros, avós e tias que ela conhecia. colocou-os todos em sua cozinha, delegou funções, formou equipes, estabeleceu prazos, metas e aplicou com maestria o conceito de linha de produção que mudou a história da humanidade. todos trabalharam com imensa sintonia e sincronismo que deixariam um relógio suíço com vergonha do trabalho mal feito e relaxado que sempre fez. o bolo seria dela, feito com destreza e alguns ingredientes secretos que ela mesma inventara. queria que o bolo fosse perfeito, digno de troféus, menções honrosas, fotos e análises para revistas especializadas, tanto por seu gosto único, sua textura firme que derretia ao menor contato com a saliva e sua decoração de extremo bom gosto e sofisticação.

todos trabalharam perfeitamente bem, as avós e as tias brigaram um pouco por divergências de métodos, umas diziam que o certo era mexer o creme em círculos no sentido horário outras diziam que o certo era desenhar um oito mexendo. a discussão só acabou quando um cheff passou pelas panelas que elas tomavam conta e ficou embasbacado com o jeito que elas usavam para mexer e disse que todas estavam fazendo muito errado e o jeito certo era desenhando de baixo para cima castelos com oito torres no sentido anti-horário em lugares que o clima era temperado e as coordenadas geográficas eram 453.78, -324.23. elas pararam de discutir e continuaram mexendo exatamente do jeito que sempre mexeram porque nunca prestaram atenção às aulas de geografia da escola.

quando a cozinha estava vazia e todos os doces já estavam sendo levados para o lugar que ficariam esperando a hora de serem comidos no dia seguinte ela começou a fazer sua arte. um bolo de seis camadas e meia, recheado de frutas silvestres e creme real, coberto com pasta americana multicolorida e decorado com fios dourados de marzipã. receita própria, com alguns ingredientes exóticos como noz moscada, molho de pimenta e glutamato monossódico. já tinha separado todos os ingredientes e tinha começado o trabalho duro de bater a massa para que ficasse homogênea e aerada. o forno já estava na temperatura ideal na hora que a massa estava pronta e ela a despejou em quatro formas diferentes e colocou-as ao forno. ajustou o timer e começou a preparar o recheio e a cobertura. tudo correu terrivelmente bem até a hora que ela sentiu o cheiro da noz moscada e lembrou-se da massa no forno. logicamente o timer não disparou, mas por que um timer faria seu trabalho se eles se divertem muito mais quando não avisam do tempo e as pessoas xingam muito?

tirou as massas do forno e por sorte, muita sorte mesmo, não estavam queimadas. em contrapartida, estavam totalmente desiguais, de um jeito que não daria para consertar, e ela não teria tempo para refaze-las. enquanto se preocupava com as massas, esqueceu o creme no fogo ligado e ele foi incinerado. labaredas chamuscaram a coifa e o teto. ela foi obrigada a usar um extintor que ela se orgulhou de nunca ter utilizado por cinco anos. obviamente, depois de tanto tempo parado ele não funcionou como devia e não apagaria nem uma única velinha de aniversário das mais baratas. ela, então, tirou sua doma e começou a batê-la freneticamente no foco do fogo do jeito que se faz em filmes, depois de uns cinco minutos batendo e metade da doma queimada ela se lembrou que se desligasse o gás tudo ficaria mais fácil. saldo final: uma doma metade queimada, um creme real destruído e ela teria que improvisar qualquer coisa com leite condensado, as frutas, amido de milho, leite e açúcar. naquela hora ela suspirou e pensou que nada mais poderia dar errado, ledo engano. decidiu que faria um creme com todas aquelas frutas exóticas batidas com os ingredientes que ela dispunha, mas na hora que ligou a centrífuga houve uma explosão de baixo porte mas que foi suficientemente grande para que queimasse o pobre aparato. quando estava prestes a começar a chorar inconsolavelmente como uma criança que perdeu o brinquedo favorito lembrou-se que tinha uma bancada, um rolo de macarrão e muito papel filme. embalou a bancada inteira em papel filme, colocou as frutas sobre o papel e as triturou com o rolo de macarrão com tamanha raiva e angústia que faria a finada centrífuga achar seu trabalho inadequadamente insatisfatório. enquanto fazia a pasta americana nada deu errado e ela estranhou efusivamente o acontecido.

por fim conseguiu fazer com que todas as etapas do bolo estivessem prontas e agora ela teria que ser malabarista para conseguir montar o bolo de seis camadas e meia com massas totalmente desniveladas, com um creme meio mole servindo de cimento e uma cobertura que não ajudava em nada para a estabilidade total da obra da engenharia que desafiaria a física moderna e tradicional se conseguisse manter-se empilhada por mais de dez minutos. tentou de muitos jeitos diferentes e o melhor resultado que conseguiu foi algo muito similar à torre de pisa. decidiu disfarçar a inclinação de quinze graus com um arranjo de flores bem volumoso e colorido, que ela compraria no dia seguinte a caminho da festa. quando ela estava limpando a cozinha e tentou mover o bolo para outro lugar e limpar a área que ele estava e suas camadas escorregaram entusiasticamente como num concurso de luta no gel. depois de alguns segundos ponderando chegou a impressionante ideia de colocá-lo na geladeira na esperança que o frio o enrijeceria e o tornaria mais apto ao transporte da cidade grande à chácara na qual a festa seria realizada. decidiu dormir na cozinha para não se atrasar no trajeto entre sua casa, pegar o bolo e ir para a comemoração.

acordou no dia seguinte duas horas atrasada, não pensou que o timer funcionaria, então programou o celular para despertar, mas não lhe veio à mente que a bateria iria acabar quando faltasse exatos dez minutos e trinta e três segundos antes da hora que tinha sido programado para tocar do jeito que aconteceu. mas, também, quem pensaria nisso? saiu correndo para pegar o vestido na lavanderia e, enquanto estava se trocando em um farol vermelho para ganhar tempo, um motorista bateu em sua traseira de um jeito que o carro só sairia do lugar se ele conseguisse milagrosamente uma cadeira de rodas - das elétricas. ela ligou para o seguro, disse o que houve, tomou um táxi e voltou à sua cozinha para pegar o bolo. pediu ao motorista que esperasse e disse onde iam, quando o motorista começou a chiar dizendo que não colocaria seu patrimônio na áera lamacenta e perigosa para aonde ia, ela mostrou o decote, deu uma piscadela e disse que o congratularia quando chegassem ao destino. o taxista, que era um estuprador em série, achou a ideia bem interessante e topou a corrida.

ela pediu ao taxista que fosse com muito cuidado e evitasse fazer movimentos muito bruscos para que o bolo não desmontasse inteiro dentro do carro. ele, que já estava planejando outros tipos de movimentos bruscos, concordou com o pedido e foi calmamente se dirigindo à chácara. mas em um farol vermelho, dois rapazes numa moto pararam do lado do motorista e um deles mostrou uma reluzente 45 cor de titânio e pediu educadamente pelo carro. ao entender a situação ela começou a chorar copiosamente como só quem tivesse vivenciado as mesmas coisas que ela desde o dia anterior faria. o taxista não entendeu. os assaltantes não entenderam. para falar a verdade, ninguém teria entendido o motivo de uma mulher com vestido de festa, sem maquiagem, com cara de sono e segurando um bolo torto no banco de trás de um táxi estaria chorando naquele momento. por mais incrível que possa parecer - e o que irá ser dito nas próximas linhas é realmente muito incrível -, os assaltantes notaram que aquele não era o tipo de choro desesperado ao qual estavam acostumados. ela ficou imóvel, atônita, chorando sem fazer barulho, com lágrimas rolando quentes por suas bochechas.

os assaltantes, comovidos com a mulher atônita, perguntaram o que tinha acontecido e ela começou a contar toda história, desde o sonho de ser cheff até o momento em que ela tentava desesperadamente chegar à uma chácara, no meio do nada, segurando um bolo que se mudasse de humor desmontaria inteiro e ela nem tinha dinheiro para comprar um bolo do senhor josé do boteco. os assaltantes se dispuseram a ajudá-la, um levaria o carro para onde os assaltantes levam os carros roubados e o outro iria com ela, de moto, até a chácara para a bodas de ouro de seus pais.

montou na moto de um jeito meio contorcionista para conseguir segurar o bolo de forma minimamente apropriada e partiram. como tudo estava dando absolutamente errado para ela, não haveria razão de mudar justo no momento que ela estava em um veículo de duas rodas, com um assaltante, segurando um bolo que implodiria a qualquer momento. um pouco antes de chegarem à chácara ouviram sirenes aproximando-se. conforme iam ficando mais perto, o assaltante se assustou, passou sobre um buraco relativamente grande para que a moto parasse abruptamente e ela saísse voando por sobre a moto. na queda ela quebrou um braço e outra coisa realmente muito incrível aconteceu - se você não achou realmente muito incrível na outra vez, deverá achar agora - o bolo permaneceu intacto, nem uma partícula de poeira grudou nele. o assaltante fugiu satisfeito sabendo que tinha feito a boa ação da vida dele e que teria uma vaga garantida no céu. felizmente, na hora do acidente, ela já estava bem perto da chácara e decidiu ir andando, contra todas suas expectativas nada de errado aconteceu no breve trajeto de cruzar a esquina do boteco do seu josé e colocar o bolo calmamente sobre a mesa.

enquanto seus pais corriam para ver o braço absolutamente torto da filha e já formava aquela comoção cheia de "ohhhs" e "ahhhs" ao seu redor, seu pai escorregou em uma pequena poça de champanhe que jazia largada, solitária, indefesa e entediada no chão e caiu de cara no bolo o destruindo completamente. para a poça aquela foi uma brincadeira divertida e ela teria gritado "de novo, de novo, de novo!" se qualquer pessoa tivesse paciência para aprender que padrão no qual as bolhas estouram é, na verdade, uma linguagem das mais sofisticadas faladas na galáxia. para o pai foi um dos momentos mais vexatórios da história de sua vida, só perdendo para o dia em que sua esposa pediu que tomasse a pílula azul. para ela foi como se tudo que houvesse de bom no mundo morresse no momento que o bolo fora destruído, sério, você jamais ficou tão triste quanto ela naquele momento. para o resto das pessoas só foi muito engraçado mesmo. pelo menos seu pai disse que o bolo estava muito saboroso.

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