ela esperava ansiosamente em seu trabalho pela chegada daquele ônibus. 7 2384. tinha decorado o número para saber de antemão que era ele quem havia chegado e já preparar o pingado e o saquinho de pão de queijo que ele tanto gostava. ele não precisava nem pedir, quando chegava ao balcão já estava tudo pronto à sua espera. ela parava qualquer pedido de qualquer cliente para preparar o de seu favorito.
ele era cobrador da linha que fazia ponto final em um terminal de ônibus e metrô bem movimentado. sempre usava a camisa encardida do uniforme com três botões desabotoados, óculos escuros como colar e passava gel que deixava brilho molhado no cabelo com luzes. ela a era atendente da lanchonete com quem ele sempre flertava.
se conheceram no clube de campo, quando ele estava saindo de uma partida de tênis e ela do treino de natação matinal. os dois estavam no restaurante do clube tomando café da manhã, ele não parava de olhar pra ela e ela não parava de fazer poses porque viu que tinha sido notada. ela era herdeira de alguma empresa enorme e ele era vice-diretor sul-americano de uma multinacional. como manda a etiqueta, ele tomou a iniciativa e pediu ao garçom que entregasse uma salada havaiana para ela. ele fazia isso todos os dias anonimamente.
a primeira vez que se falaram foi quando ele pagou a conta dela antes que ela pudesse tê-la pedido e quando a herdeira perguntou quem havia pago ao garçom ele indicou o vice-diretor. ela agradeceu indo à sua mesa perguntando se ele não gostaria de pagar o jantar algum outro dia e deixou seu telefone.
o cobrador, depois de três meses tomando pingado e comendo pão de queijo de graça, chamou a atendente da lanchonete para ir ao forró. ela não aceitou de primeira, preferiu dar a resposta três dias depois, para se fazer de difícil - e também porque já tinha marcado com benga, o pegador do bairro. ela desmarcou com o benga prometendo dar a ele uma recompensa, ele pensou que ela finalmente iria liberar o botão e nem ficou transtornado com a ideia.
no forró eles dançaram tanto que os dois saíram com os pés sujos. antes da metade da noite o cobrador já tinha aberto a camisa rosa mostrando seu torço não tão bem torneado e a atendente já tinha sido tão encoxada que ela se sentiu no ônibus intermunicipal das seis da manhã algumas vezes no decorrer da noite. ele pagou a ela duas doses de pinga com mel para que ela ficasse mais propensa a outras coisas, ela aguentou firme e não liberou nada para que ele não pensasse que ela era fácil.
na manhã seguinte à conta paga, ela, notando que o vice-diretor estava lá, foi até sua mesa e perguntou se aquela cadeira estava ocupada. ele tirou os olhos no laptop e ficou um tanto assustado com a postura da moça, mas relevou, eles eram ricos, tinham todo direito de serem excêntricos. tiveram um café da manhã agradabilíssimo, ladeado por posições sociais e filosofia pós-moderna. descobriram que tinham pontos de vista compatíveis, e era isso que ela buscava, e o que, para ele, deixava uma mulher interessante. o encontro para o jantar veio na noite seguinte, sendo marcado para a próxima semana porque a herdeira tinha uma viagem inadiável até o fim de semana seguinte. não era verdade, mas ela queria que ele acreditasse veementemente nisso - mesmo que fosse prejudicar seu treino de natação por não ir ao clube por praticamente uma semana.
no dia do jantar, ele chegou mais cedo e deixou aos cuidados do vallet um pequeno ramalhete discreto de lírios casablanca para ser entregue à herdeira quando chegasse. fez questão de que o vallet decorasse o pequeno texto de duas linhas e o congratulou com cinquenta reais, e disse que se fosse bem feito, daria outros cinquenta. as flores surtiram o efeito esperado, ela passou o jantar inteiro mais receptiva e amigável, dando sinais de que a elegância era o que ela mais apreciava em outra pessoa.
quando o cobrador voltou ao ponto final, pela primeira vez depois do forró, ficou tanto tempo conversando com a atendente que atrasou a saída do ônibus - se é que um ritual animalesco de acasalamento verbalizado possa ser chamado de conversa. quando ele chegou pela segunda vez ao ponto final ele a chamou para ir para um boteco que disse ser muito bom e ter coisas baratas, ela não sabia que esse bar ficava no mesmo quarteirão de um hotel barato que fazia promoção às quartas-feiras e aceitava ticket alimentação como pagamento.
eles foram ao bar e conversaram sobre muitas coisas, ele mostrou a ela como as coisas funcionavam em uma empresa de ônibus e ela revelou que todos os salgados da lanchonete eram terceirizados e vinham congelados. ele pagou diversas bebidas, ele sabia que mulheres ficam mais acessíveis quando bebem um pouco. ela, controlando a situação, bebeu só até o ponto em que ficaria mais solta para fazer o que ela chamava de "loucuras".
saíram de lá e foram para o hotel. ela teve uma noite que até valeu à pena e ele achou que todo dinheiro gasto - ao todo R$67,35 - não foi tão bem investido. ele não sabia que o tanto de pão de queijo e pingado que ele conseguiu de graça ultrapassava bastante o tanto que ele gastou.
depois do jantar, o vice-diretor ficou três dias afastado do clube, mandou uma mensagem de texto para a herdeira dizendo que estava em uma viagem de negócios em algum país da américa do sul. quando ele voltou, a herdeira já planejara algo que fosse memorável: sentou-se com ele na mesa do restaurante do clube e pediu de forma séria que ele desmarcasse todos os compromissos do dia. ele pestanejou um pouco, mas cedeu depois de remarcar os encargos mais importantes. ela, então o levou para um dos iates da família e informou que durante aquele dia ele estaria aos cuidados dela.
no iate, depois de algumas taças de champanhe da mais fina safra e depois de uma tarde formidável aconteceu o que havia de acontecer. ela ficou satisfeita por ter sido a primeira vez que algum acompanhante não houvesse ficado mareado, ele aproveitou a tarde, mas desgostou consideravelmente o tipo de atitude autoritária que ela demonstrara ter.
poucos dias depois do hotel, o cobrador informou à atendente que a chefia o havia mudado de linha e ele não estaria mais no ponto final todos os dias. ela não sabia que ele tinha pedido para mudar de itinerário porque ele não queria mais vê-la. ela ficou triste, porque teria que voltar aos braços de benga, o pegador do bairro, e tinha achado que o cobrador dançava forró melhor. ele deixou um número de telefone, visivelmente errado para que ela nunca mais conseguisse entrar em contato com ele.
no restaurante do clube, durante um dos alguns encontros que tiveram lá, o vice-diretor deu a notícia derradeira de que conseguira uma promoção e seria transferido o quanto antes para a filial da argentina. a herdeira não ficou impressionada, nem demonstrou qualquer excitação quando recebeu a notícia. mas isso só porque ela não sabia que ele estava mentindo e que realmente não iria para outro país, tampouco tivera alguma promoção. ele ainda se deu ao trabalho de responder algumas mensagens de texto até se cansar e dizer que havia se apaixonado por uma dançarina de tango. mas, nesse momento, ela já tinha o esquecido. estava envolta em outra aventura com um cobrador de ônibus, que conhecera quando o veículo em que ele trabalhava se chocou contra a traseira de seu carro no farol vermelho de um cruzamento perto de uma estação de metrô.
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4 comentários:
nossa joana, adorei esse conto!
de verdade.
adoro histórias que se interligam.
quase os seis graus de separação!
'ela não sabia que esse bar ficava no mesmo quarteirão de um hotel barato que fazia promoção às quartas-feiras e aceitava ticket alimentação como pagamento.'
euri mto!
Cara, um dos melhores que vc já escreveu. Mto legal, bem escrito, engraçado... btw, mto bom =)
Love u
"ela não sabia que esse bar ficava no mesmo quarteirão de um hotel barato que fazia promoção às quartas-feiras e aceitava ticket alimentação como pagamento."
Tem noção que eu engasguei no meio do escritório por causa disso?
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