para que entenda melhor minha situação, devo voltar à minha infância: nasci em um castelo com todas as pompas de monarca, imperatriz, ou a figura que vier à sua cabeça quando se assiste a um filme sobre a aristocracia européia no século XVIII. tudo bem, eu assumo, não é verdade; não nasci em um castelo, não sou rainha, princesa ou qualquer coisa do tipo. sou, sim, herdeira de algo grandioso, único e incrível, assumo; mas longe de estar em um castelo com vestidos grandes e todas as coisas que vem junto com eles e com posições de alto escalão monárquicas. como herdeira de tal "reino" fui criada para assumi-lo, quando a hora se fizesse presente. como você já deve ter visto em filmes ou estudado durante alguma aula de história, pessoas incumbidas às grandes posições devem adotar um certo tipo de comportamento que é um tanto diferente do resto da população. infelizmente eu sou uma dessas pessoas.
tudo que sou é resultado de anos de educação a ferro e fogo. a quantas punições severas já fui acometida, quando jovem, por tomar as decisões que não deveriam ser tomadas... só porque tive compaixão, porque não queria deixar que ninguém se ferisse ou que acontecesse qualquer coisa má com quem não merecesse. muitas vezes troquei o sofrimento dessas pessoas pelo meu. sofria de peito aberto, sem medo da dor por ter certeza de que estaria fazendo algo bom. demorou para aprender as incumbências de minha posição!
é difícil aprender que para o bem maior alguns poucos devam sofrer. tudo bem, é uma decisão lógica. o problema, entretanto, é quando é você quem tem que tomar tais decisões. o seu comportamento é totalmente reforjado, depois de um tempo você aceita a posição e passa a entendê-la, começa a ver como as coisas que você deve fazer são necessárias para a fundação de uma nova ordem social. depois que se percebe esse ponto, para passar a admirar ou até mesmo apreciar a posição de advogado do diabo é questão de pouquíssimo tempo. a maioria se corrompe, o que suponho - e espero - que não tenha acontecido comigo.
agora, já não sou o tipo de pessoa que se pode brincar sem medo. não, nem quando era criança: a posição é herdada e, com ela, o comportamento sóbrio e austero. sou o que dizem ser uma vilã, uma pessoa má que faz as outras sofrerem por livre e espontânea vontade, que não tem moral, não tem méritos e tem um passe livre para a área vip do inferno. pelo menos é o que dizem, não estão certos, mas é o que falam. minha popularidade não é tão boa quanto eu gostaria, afinal, todos necessitam ter medo de mim. hoje eu sei que se entendessem não haveria sentido para que a posição existisse.
tenho essa imagem ruim adotada pelas pessoas porque não são pelos padrões morais de alguém que julgam-se as coisas. é dada atenção, predominantemente, ao que a ação adotada vá trazer aos outros: pode ser um exemplo a ser evitado, inspiração, ou qualquer outra coisa que seja necessária no momento, mas nunca é julgada a índole da pessoa. para que seja melhor entendido, tomo como exemplo uma situação conhecida por todos os cristãos: eu seria a pessoa que fez judas trair jesus e o comandante que condenou o assim-chamado filho de deus à morte. é com esse tipo de coisa que sou obrigada a lidar todos os dias. talvez em menor escala, mas eu não tenho empatia pelas situações, eu executo ordens, porque é isso que deve ser feito para um bem maior.
infelizmente, para executá-las é necessário que eu esteja presente. não sou qualquer criatura sobrenatural ou qualquer espécie de deus, sou um ser humano normal como você. com a minha presença necessária, toda a má publicidade vem para mim. sou eu quem é manipuladora, sou eu quem é vil, sou eu quem arruina vidas... mas alguém tem que fazê-lo. é para o equilíbrio do todo.
agora, olhando para o passado, eu consigo enxergar que minha índole foi criada para que eu pudesse adotar as posturas necessárias, sem me sentir mal como qualquer outra pessoa sentiria. eu tento fugir disso, dessa desumanização imposta a mim. não consigo, já faz parte de mim. associo a um vício impossível de se abandonar. dá prazer, um prazer imenso, sensação de ter superado o nirvana. como se luta contra algo assim? só sei que tento. tento todos os dias e falho dolorosamente em cada um deles. não é por mal ou falta de vontade. todos que passaram pela posição antes de mim apreciavam a posição, diziam ser tudo que eles sempre quiseram. eu não aprecio, eu não gosto, eu não tive escolha. nunca quis estar nessa posição, nunca quis que esse vício tivesse sido desenvolvido dentro de mim. eu lutei contra todos os envolvidos na operação, lutei contra a operação, lutei... eles só diziam para que eu aceitasse logo e os privasse de maiores esforços. hoje eu digo que eles tiveram que se esforçar bastante, mas o meu esforço foi em vão, eles me venceram.
sou a sacerdotisa viciada no trabalho sujo dos maiores, eu pelo menos deveria ter uma vida de sucesso e alegria, para que algo compensasse. mas nem isso, minha vida sempre foi um emaranhado de coisas horríveis acontecendo suscetivamente, sem que eu pudesse tomar qualquer ação contrária. sempre tive uma vida horrível, com uma posição horrível que só traz desgraça e dor, quando tudo que eu sempre quis fazer era exatamente o contrário. eu sempre quis amar, fazer o bem, curar da dor. toda vez que falhava nas tentativas era dito que este não era o meu papel, que eu não tinha sido criada para ele.
tentei muito nadar contra tudo, até que aceitei meu fardo. hoje me considero uma viciada. continuo lutando contra meu vício, apesar de não vislumbrar qualquer chance de êxito. peço desculpas a todos por ser fraca e não conseguir superar essas adversidades. peço para que não seja julgada, não há como saber o que acarreta estar nessa posição se nunca se esteve nela, não há como se fazer a menor idéia. é terrível ser você quem tem que fazer o trabalho sujo. me desculpo novamente e reafirmo: não tive a menor chance de escolha.
27.1.10
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Um comentário:
Nós crescemos acreditando que temos escolhas, e quando finalmente estamos cheios de esperanças e positivismo, damos de cara com o muro das objeções divinas, aí eles nomeiam a nossa falta de escolha de "missão", e aceitamos, afinal, é em nome de um bem maior, do equilíbrio e todas aquelas coisas que não chegamos a dar importância.
Somos convencidos de que é melhor assim, mas escolher, minha cara, não escolhemos absolutamente nada.
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